Os avanços da medicina de imagem estão ajudando a revelar segredos que, literalmente, morreram com seus donos. Tecnologias como a tomografia computadorizada são capazes de fornecer informações preciosas sobre múmias e esqueletos sem a necessidade de corrompê-los. Com isso, é possível descobrir coisas que vão da aparência à causa da morte de um faraó.
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Os antigos egípcios mumificavam animais como gatos, íbis, falcões, cobras, crocodilos e cães. Às vezes, os bichos eram enterrados com os donos. Porém, as múmias animais mais comuns eram as oferendas votivas, compradas por visitantes dos templos para oferecê-las aos deuses, como se fossem mediadoras da comunicação com as divindades. Nesses casos, diferentes espécies eram criadas ou capturadas por tratadores, mortas e, então, embalsamadas por sacerdotes do templo. Acredita-se que cerca de 70 milhões de múmias animais foram criadas dessa maneira.
Com a micro-TC, os pesquisadores puderam observar que a gata era um filhote com menos de 5 meses — os dentinhos ainda não haviam irrompido. A separação das vértebras indica que, possivelmente, foi estrangulada. O pássaro, provavelmente, era um francelho euro-asiático, tipo de falcão. A varredura permitiu fazer a medição virtual dos ossos e, por isso, os cientistas conseguiram identificar a espécie.
Já a cobra era uma jovem naja e foi sujeita a um tratamento tenebroso. Evidências de danos renais mostram que foi privada de água durante a vida. A análise de fraturas ósseas indica que o animal foi morto a chicotadas. As imagens também permitiram verificar que ele passou por um procedimento comum do Reino Antigo ao período romano: a abertura da boca. Realizado durante a mumificação, o ritual visava devolver os sentidos ao morto. Essa é a primeira evidência de um comportamento ritualístico complexo aplicado em um animal.
“Essa sinergia entre alta tecnologia e arqueologia destaca o que é possível quando os limites da pesquisa típica são ultrapassados”, diz Marc Walton, pesquisador do Centro de Estudos Científicos nas Artes da Universidade de Northwestern, nos EUA. Ele é um dos cientistas que, recentemente, publicaram um artigo na revista Journal of The Royal Society Interface no qual é descrito o uso de uma tecnologia que emite poderosos feixes de raios X para a visualização de uma múmia de 1,9 mil anos.
Peça intacta
Foi a primeira vez que se usou técnicas de difração de raios X na análise de uma múmia intacta. O exame confirmou vários detalhes e acrescentou novos ao que já se sabia sobre ela. O corpo era de uma criança de 5 anos, provavelmente menina, e foi enterrado com um amuleto de escaravelho de calcita — objeto sagrado destinado a proteger a alma na passagem para a vida após a morte. Os cientistas sabiam que havia objetos dentro da múmia, mas não conheciam quais eram nem o material dos quais foram feitos.
Principal autor do artigo, publicado em dezembro passado, Stuart Stock, professor de biologia molecular da Northwestern, conta que a múmia foi escavada em 1911 e, em 2018, foi exposta no campus da universidade. Na preparação da exposição, Stock foi convidado a fazer uma pesquisa sobre o seu conteúdo. Ele começou fazendo imagens com a tomografia computadorizada de uso médico, que forneceu uma espécie de roteiro para seu trabalho posterior, indicando para onde apontar os poderosos feixes de raios X gerados pela fonte avançada de fótons (APS) do Laboratório Nacional de Argonne, que utiliza a radiação síncrotron como fonte de luz.
A equipe da Northwestern teve a ajuda do físico da APS Jonathan Almer, integrante da Divisão de Ciência de Raios X da Argonne e um dos coautores do artigo. Almer lidera a equipe científica do Beamline 1-ID, equipamento que faz uso de raios X de alta energia capazes de penetrar amostras grandes. No artigo, os autores destacam que, normalmente, os objetos buscados nos estudos da APS são do nível de mícrons, em amostras milimétricas. Mas, dessa vez, tratou-se de um esquife com cerca de 1m.
A análise mostrou que o esqueleto da criança está bem preservado e não mostra sinais de trauma, o que significa que ela, provavelmente, morreu de doença. O mais surpreendente, segundo os autores, foi a descoberta do amuleto, feito de calcita, um mineral carbonato. Embora não seja incomum que esses objetos sejam compostos por esse material, trata-se de um mineral raro.
Nova versão sobre morte de faraó
Há cerca de duas semanas, um estudo publicado na revista Frontiers in Medicine também trouxe mais revelações do Egito — dessa vez, sobre um famoso faraó cuja morte, indiretamente, levou à reunificação do país no século 16 a.C. Trata-se de Seqenenre-Taa-II, o Bravo, que governou, brevemente, o sul do Egito durante a ocupação do país pelos hicsos, uma dinastia estrangeira que manteve o poder em todo o reino por cerca de um século (1650 a 1550 a.C.). Na tentativa de expulsá-los, Seqenenre-Taa-II foi morto. Os estudiosos têm debatido como, exatamente, o rei morreu desde que sua múmia foi descoberta e estudada, na década de 1880.
Os exames que se seguiram à análise inicial indicaram que o rei morto havia sofrido vários ferimentos graves na cabeça, mas nenhum outro no corpo. A teoria prevalecente, com base nas evidências, era que ele havia sido capturado em uma batalha e executado posteriormente, possivelmente pelo próprio rei hicso. Outros sugeriram que Seqenenre-Taa-II foi assassinado enquanto dormia, numa conspiração do palácio real. O mau estado da múmia sugeria que o embalsamamento foi feito às pressas, longe da oficina real de mumificação.
Agora, a tomografia computadorizada dos restos mumificados de Seqenenre revelou novos detalhes sobre os ferimentos na cabeça, incluindo lesões não detectadas anteriormente e que os embalsamadores esconderam com habilidade. Segundo a interpretação das imagens de alta resolução, Seqenenre foi, de fato, capturado no campo de batalha, mas suas mãos foram amarradas nas costas, evitando que ele se defendesse contra o ataque.
“Isso sugere que ele estava realmente na linha de frente com seus soldados, arriscando sua vida para libertar o Egito”, disse, em nota, Sahar Saleem, professora de radiologia da Universidade do Cairo, especializada em paleorradiologia — técnica que emprega tecnologias de imagens médicas para estudar, de forma não invasiva, uma seção transversal de vestígios arqueológicos, incluindo corpos. Entre outras coisas, ela pode ajudar a determinar a idade da morte, o sexo e como a pessoa morreu.
Cinco armas
Por exemplo, as tomografias computadorizadas, combinadas com outras evidências, sugerem que a
execução do faraó foi realizada por vários carrascos, o que os cientistas confirmaram estudando cinco armas hicsas diferentes que combinavam com os ferimentos do rei. “Em uma execução normal em um prisioneiro amarrado, pode-se presumir que apenas um agressor ataca, possivelmente de ângulos diferentes, mas não com armas diferentes”, explica Saleem. “A morte de Seqenenre foi, antes, uma execução cerimonial.”
O estudo também determinou que Seqenenre tinha cerca de 40 anos quando morreu — a estimativa mais precisa até o momento. Saleem e o coautor do estudo, o famoso Zahi Hawass, arqueólogo e ex-ministro egípcio de antiguidades que participou de inúmeras séries televisivas, foram os pioneiros no uso de tomografias computadorizadas para estudar os faraós e guerreiros do Novo Reino, incluindo nomes conhecidos, como Hatshepsut, Tutancâmon, Ramsés III, Tutmose III e Ramsés II. No entanto, Seqenenre, com base nas evidências disponíveis, parece ser o único entre esse ilustre grupo a estar na linha de frente do campo de batalha.
O estudo de TC revelou detalhes importantes sobre a mumificação do corpo de Seqenenre. Por exemplo, os embalsamadores usaram um método sofisticado para esconder as feridas na cabeça do rei, com uma camada de um material de embalsamamento que funcionava de forma semelhante aos preenchimentos usados na cirurgia plástica moderna. Isso implicaria que a mumificação ocorreu em um laboratório de mumificação real, e não em um local mal equipado, como interpretado anteriormente.