É pouco provável que alguém que nunca bebeu um vinho sugira rótulos da bebida para harmonização de pratos em um restaurante. Mas quem está oferecendo essa consultoria no tradicional restaurante português Tasca da Esquina, em São Paulo, não é bem um sommelier — aliás, não é nem mesmo uma pessoa, mas o ChatGPT.
A tradicional casa de comida portuguesa adotou um sistema que usa a inteligência artificial mais falada dos últimos tempos para sugerir opções de vinhos que combinam com a comida pedida. Como o ChatGPT utiliza todo o conhecimento disponível na internet para tentar responder a qualquer tipo de pergunta feita a ele, a ferramenta se baseia nessas informações para sugerir as harmonizações.
O sistema, chamado de "sommelier virtual", foi idealizado pela empresa Atena, que fornece softwares para operação e gestão de restaurantes. O Tasca da Esquina se diz pioneiro ao implantar essa ferramenta. O CEO da Atena, Francisco Gioielli, explica que a inteligência artificial usa APIs para possibilitar a comunicação entre a plataforma na qual o cliente escolhe os pratos e o Chat GPT, que irá sugerir os vinhos. A API, segundo ele, é "o idioma e ambiente que permite dois sistemas conversarem".
Na prática, o cliente chega ao Tasca da Esquina, aponta o celular para um QR code e escolhe os pratos de sua preferência. Mas, ao contrário do que acontece em geral com restaurantes com cardápios virtuais, o pedido já pode ser feito pelo próprio aparelho do consumidor, e é quando o sommelier virtual entra em ação.
Cada prato já é previamente associado a algumas opções da bebida, como tinto, branco, rosé ou verde, e o cliente pode escolher uma ou mais delas. Em seguida, existem quatro opções de faixas de preço, até R$ 300, até R$ 600, até R$ 900 ou sem limite. Depois de selecionado o valor, o ChatGPT apresenta três rótulos finais.
Um dos fundadores da Eno Cultura, escola que forma sommeliers desde 2013, Paulo Brammer, acompanhou a reportagem em uma visita ao Tasca da Esquina para conferir as recomendações de vinho da inteligência artificial. Ao contrário do que se poderia imaginar a respeito de um sommelier avaliando uma ferramenta que poderia até substituir essa função, a opinião de Brammer sobre a novidade é, em partes, positiva. O primeiro ponto elogiado foi a facilidade de uso da inteligência artificial.
De modo geral, o sommelier considerou que as sugestões do ChatGPT foram corretas, mas algumas combinações deixaram a desejar, segundo ele. Durante a visita ao restaurante, foi servida uma paleta de cordeiro harmonizada com vinho tinto, o que está dentro do esperado pelos especialistas. A questão é que o prato leva hortelã no tempero, algo que não parece ter sido considerado na sugestão do sommelier virtual.
Para Brammer, o rótulo mais indicado no caso seria um cabernet ou algum vinho que tivesse notas de eucalipto ou mentol. O sommelier considera que o problema aconteceu pela falta de personalização dos pratos, que são descritos sem todos os detalhes para que a ferramenta encontre as sugestões mais adequadas.
É quando o cliente escolhe opções muito diferentes umas das outras que a ferramenta apresenta mais problemas. Essa dificuldade não é exclusiva da ferramenta. Brammer conta que mesmo os bons sommeliers também precisam de muita experiência para saber equilibrar sabores opostos.
Quando são pedidos, por exemplo, filé-mignon, que harmoniza com tintos, e camarão gratinado, que é mais bem acompanhado pelos brancos, o sommelier virtual sugeriu somente opções de vinho tinto. Para o profissional de carne e osso, a solução seria um rosé "mais encorpado, talvez até com um pouco de madeira".
A falta de personalização também vale para os textos que acompanham os três rótulos sugeridos pelo sommelier virtual. Brammer considera que eles falham quando sugerem, por exemplo, que o álcool do vinho modera o sabor do prato, o que não tem base técnica. Os parágrafos das descrições gerados pela inteligência artificial são genéricos, afirma o sommelier do mundo real, e é perceptível que não foram escritos por alguém que entende do assunto.
Brammer explica que a justificativa dada por um sommelier de verdade não serve apenas para ligar um prato a um vinho, mas sobretudo para conectar o produtor ao consumidor. Essa experiência também aprofunda os usos do rótulo ao contexto em que está sendo consumido, como jantar entre amigos, reunião de negócios ou mesmo a temperatura do dia. Apesar de ajudar clientes e restaurantes em um primeiro momento, Brammer acredita que a relação que acontece entre o sommelier e o cliente é algo que a ferramenta não vai conseguir substituir.
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