A esperança trazida pela pandemia, enfim, em um nível de controle, com retomada do turismo e anúncio de novos projetos para dinamizar o setor devastado no período mais restritivo da crise sanitária, leva à redescoberta de rotas de grande importância cultural e histórica em Minas. Entre elas está o Caminho do Comércio, que completa 210 anos e nasceu para facilitar a ligação das Gerais com o Rio de Janeiro e permitir, de forma mais rápida e econômica, o abastecimento da corte.
A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, tendo à frente dom João VI (1767-1826), fez aumentar consideravelmente a população do Rio. Assim, em 14 de novembro de 1811, a Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação do Estado do Brazil e seus Domínios Ultramarinos, órgão integrante da administração joanina, determinou a abertura do Caminho do Comércio. Agora, no século 21, o trajeto será reestruturado e deverá ganhar sinalização em pontos específicos para orientar os viajantes.
A importância da antiga rota de abastecimento da corte portuguesa e novo itinerário cultural, com suas imensas possibilidades e atrativos, despertou a atenção dos historiadores Marcos Paulo de Souza Miranda – autor de vários livros, a exemplo do recém-lançado “Introdução ao direito do patrimônio cultural brasileiro” – e Rodrigo Magalhães, que pesquisam o percurso há mais de 10 anos. No fim do ano passado, em Bom Jardim de Minas, no Sul do estado, quando houve a comemoração dos 210 anos de criação do Caminho do Comércio, eles lançaram “Estudos históricos sobre o Caminho do Comércio – Edição comemorativa da rota”, obra que pode nortear os interessados em seguir viagem.
Segundo os autores, o Caminho Novo da Estrada Real, aberto no início do século 18 por Garcia Rodrigues Paes (sertanista, falecido em 1738), era muito longo e não conectava o Rio de Janeiro diretamente com a principal área de produção de alimentos de Minas Gerais – regiões Sul e Campo das Vertentes –, tornando-se obsoleto e inadequado no início do século 19.
“A situação motivou a criação do Caminho do Comércio, então muito mais curto e econômico, pois os impostos cobrados na divisa entre as capitanias eram mais baixos”, explica Souza Miranda, também promotor de Justiça e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
Alimentos e ferramentas
Conforme as pesquisas de Souza Miranda e Magalhães, pelo roteiro, concluído em 1816, os tropeiros partiam da Comarca do Rio das Mortes, cuja sede era em São João del-Rei, no Campo das Vertentes, mas abrangia vasta extensão de Minas, conduzindo bois, porcos, toucinho, galinhas e queijos. Na volta do Rio de Janeiro, traziam sal, azeite, vinho, vinagre, bacalhau, lampiões, ferramentas e vidros. “Os registros históricos demonstram, ainda, que grandes quantidades de escravizados eram transportados do litoral em direção às fazendas mineiras para o abastecimento de mão de obra”, explica Souza Miranda.
Ao longo do trecho, o viajante vai notar que há cidades, distritos e outras localidades muito próximos uns dos outros. A razão está no passado. A cada três léguas, aproximadamente, existiam ranchos rústicos rodeados de estruturas singelas que permitiam o pernoite dos viajantes, sempre contando com uma bica de água limpa, estruturas de pedra para fogueiras e árvores, tais como a araucária, em suas proximidades, cujos galhos secos funcionavam como lenha de fácil combustão, essencial para minorar o frio nas serras e nos grotões da região da Mantiqueira.
Do início ao fim do caminho, são 280 quilômetros. Com início na localidade de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu (atual distrito de Nova Iguaçu-RJ), o Caminho do Comércio cortava a área hoje denominada Reserva Biológica Federal do Tinguá, subia as serras, passava pelo porto de Ubá (atual Andrade Pinto, distrito de Vassouras-RJ), seguia em direção a Valença, também no território fluminense, e depois passava pelos antigos arraiais mineiros de Rio Preto (região de Varejas e Funil), Bom Jardim (passando por Taboão), Turvo (atual Andrelândia), Madre de Deus, São Miguel do Cajuru, Rio das Mortes Pequeno e, finalmente, a Vila de São João del-Rei.
Caminho do Comércio
Em Minas...
» São João del-Rei
» Madre de Deus
» Andrelândia
» Bom Jardim
de Minas
» Rio Preto
...e no Rio de Janeiro
» Valença
» Iguaçu Velho
» Rio de Janeiro
Marcas de cientistas e atrativos mapeados
Além de comerciantes, muitos cientistas estrangeiros, conforme pesquisas, percorreram o trajeto durante o século 19. Entre eles o francês Auguste de Saint-Hilaire (1819), os ingleses Robert Walsh (1829) e Charles James Fox Bunbury (1835) e o alemão Ernst Hasenclever (1839). “Todos deixaram registros importantes sobre o caminho. Muitos vestígios e alguns trechos originais do Caminho do Comércio ainda existem e estão sendo mapeados por um grupo de pesquisadores que atua na região do Alto Rio Grande, em Minas Gerais”, adianta Souza Miranda.
Quem percorrer o trajeto terá à disposição atrativos culturais e paisagísticos, além de vários locais para a prática do turismo ecológico e cultural. Estão à espera dos visitantes as ruínas centenárias de Iguaçu Velho, a natureza exuberante da Serra do Tinguá e as fazendas coloniais da região de Valença e Vassouras, no Rio de Janeiro. Em Minas, as cachoeiras e paisagens serranas entre Rio Preto e Bom Jardim, incluindo a famosa gruta do Funil, a arquitetura colonial, os sítios arqueológicos, os doces, o queijo e a cachaça de qualidade produzidos na região de Andrelândia, as fazendas e igrejas centenárias, as serras e as tradições folclóricas da região de Madre de Deus de Minas, a capela de São Miguel do Cajuru, com pinturas artísticas do renomado pintor José Joaquim da Natividade...
Em Minas, tem mais pra ver: as ruínas da antiga Capela do Rio das Mortes, onde foi batizada Nhá Chica, considerada milagrosa; a imponente arquitetura tricentenária de São João del-Rei, entre outros pontos. O livro traz, no final, o Passaporte do Caminho do Comércio, para que os viajantes possam colecionar carimbos dos municípios por onde passam.
E há novidades: em Rio Preto, na Zona da Mata, o passaporte do viajante já está sendo carimbado inicialmente na rodoviária, localizada na Praça Barão de Santa Clara, no Centro da cidade. Enquanto isso, a Prefeitura de Nova Iguaçu (RJ) instala oito totens de sinalização na Estrada Real do Comércio.
Gestão
Segundo o secretário Municipal de Esportes, Lazer e Turismo de Bom Jardim de Minas, Ademir Aparecido Rodrigues, o caminho será reestruturado. “Precisamos nos reunir com todos os gestores dos municípios, de Minas e do estado do Rio de Janeiro, para traçar os próximos passos e organizar o roteiro nas estradas que são de terra, bem como o treinamento de guias. Por enquanto, não é aconselhável percorrer o Caminho do Comércio sem guia”, diz o secretário. Quando estiver estruturado, destaca Ademir, o roteiro vai dinamizar o turismo e criar oportunidades para a população.