Jornal Estado de Minas

CÉU DE MONTANHAS

Ceramistas de Minas oferecem vivências a lá 'Ghost: do outro lado da vida'


As mãos inabilitadas e desajeitadas tocam a argila úmida no torno giratório. Em segundos, a bola barrenta começa a ganhar forma. Ganha aspecto de um objeto, ainda indefinido, mas com projeto de se tornar um vaso de flor. Em um descuido, com a velocidade acelerada do giro do maquinário, a peça se desfaz. Tomba para o lado, e só mesmo com a ajuda de um mestre ceramista para refazer o trabalho iniciado. Nessa hora, não tem como não lembrar da icônica cena do filme “Ghost - do outro lado da vida”, com a bela atriz Demi Moore, no torno de cerâmica, sendo acariciada e abraçada pela presença do espírito do amado, vivido por Patrick Swayze. Em qualquer lugar do mundo, ao tocar a trilha ‘Unchained Melody’, a associação com casal é direta e magistral. 





Essa foi uma experiência nova que tive o prazer de vivenciar no ateliê Cerâmica Raiz, liderado por Cecília Gobbo e Lenine Lucas. Eles utilizam a argila extraída do riacho vizinho e pigmentos naturais das pedras do quintal para moldar peças que são texturizadas pelos veios das folhas colhidas na horta. A queima é feita em um forno catenário construído por eles mesmos, alimentado com lenha por até 20 horas. A cinza produzida é usada para fazer o esmalte que dá acabamento à cerâmica, garantindo um resultado único em cada peça.
 
Casal de artistas Lenine e Cecília recebem os visitantes com um delicioso café da manhã (foto: Daniele Teixeira/ Céu de Montanhas)


Cecília e Lenine acreditam que seu interesse pela cerâmica está profundamente ligado ao território de Brumadinho e à natureza maravilhosa e única que a cidade oferece. Em cada época do ano, o contato com a natureza desperta algo novo e diferente da cidade, eles percebem os ciclos da natureza. Para eles, buscar a matéria-prima na natureza traz muito aprendizado e valoriza ainda mais o trabalho artístico.“Se não estivéssemos em Brumadinho, não estaríamos trabalhando com cerâmica. A sua presença forte no território influencia todos nós. Existe algo que fica impregnado na atmosfera”.

Na vivência no ateliê da Cerâmica Raiz, passei por um ritual - da retirada da argila, tratamento e, por fim, a experiência de moldar uma peça em um torno giratório (foto: Daniele Teixeira/ Céu de Montanhas)

Nessa experiência sensorial, com direito a café da manhã com bolo de laranja e café coado na hora, e depois, vivenciar todo o processo da arte da cerâmica – da retirada da argila ao manejo do torno – senti a natureza vibrar ao redor. As árvores, fruto de um trabalho de reflorestamento feito pelo casal Cecília e Lenine, dão boas-vindas aos visitantes. Há algo de mágico ao sopé da Serra da Moeda. A rocha, imponente, emite sons, como se nos falasse que ali, naquele chão sagrado, viver é um momento de relaxamento e contemplação. E ao tocar o barro, existe a conexão com os espíritos da natureza. Como em Ghost, eles estão ao nosso redor nos abraçando. Um lugar que merece ser visitado, muitas e muitas vezes. 




 
SERVIÇO:

(31) 98827-7038
 @ceramica.raiz
 ceramicaraiz.serradamoeda@gmail.com 


Alimento da alma

Outra experiência sensorial foi a visita ao Ateliê Xakra, do artista e ceramista Benedikt Wiertz, reconhecido internacionalmente por seu trabalho - exposto em galerias e museus de diversos países (foto: Carlos Altman/EM)
 

Se não bastasse a primeira experiência vivida, partimos para uma nova. Fui almoçar e conhecer o trabalho do artista alemão Benedikt Wiertz, que vive no Brasil há 27 anos. Ele foi professor e diretor da Escola Guinard até 2015, quando se mudou para a Encosta da Serra da Moeda e criou, ao lado da arquiteta e culinarista Joseane Jorge, o ateliê Xakra 88 ( hoje, somente Cerâmica Xakra). Wiertz conta que a escolha do lugar foi estimulada pela presença de outros artistas na região, que se deslocaram para lá atraídos pela cerâmica de Toshiko Ishii.


Reconhecido internacionalmente por seu trabalho - exposto em galerias e museus de diversos países-, o artista transita hoje entre a cerâmica artística e a utilitária. “Faço as duas coisas no meu ateliê. Tenho o mesmo prazer e empenho na criação das peças independente do enquadramento como artística ou utilitária. Em diversos dos meus trabalhos e projetos, ambas áreas se juntam, sobrepõem e se nutrem uma da outra”, explica. 


Entre as peças utilitárias, destacam-se os potes de fermentação, famosos entre chefs de cozinhas de todo o país. É com eles que Joseane prepara pratos como kimchi, chucrute e kombucha. O casal mistura seus talentos para criar experiências abertas ao público interessado em arte, gastronomia e natureza. 






No almoço, que faz parte da vivência do Ateliê Xakra, experimentei uma saborosa moqueca de jaca preparada pela culinarista Joseane Jorge. Um prato de sabor único e textura que lembra mesmo frutos do mar (foto: Carlos Altman/EM)

Entre um papo e outro, e com um almoço especial, orgânico e quase vegano servido à mesa pela chef Joseane, Benedikt  prepara a queima de Raku – técnica japonesa onde as peças de cerâmica são colocadas cuidadosamente em um forno especial, que é aquecido a temperaturas muito altas. Durante a queima, as peças são retiradas do forno em momentos específicos para serem resfriadas em um recipiente com serragem ou papel, o que cria uma reação química que resulta em um craqueado em cores e texturas únicas. O almoço servido – leve, saboroso e suculento, alimenta, com as peças do artista alemão, a alma de quem vicencia naquele ateliê visitado por miquinhos e pássaros silvestres.  Um baquete lúdico e espiritual.
 


Um dia de cozinha criativa com Josi

Que tal passar um fim de semana no chalé e experimentar um jantar único? Joseane Jorge e Benedikt Wiertz misturam seus talentos criando experiências em que o tempo oferece uma pausa para você conhecer (foto: Carlos Altman/EM)
 
 
Esta vivência propõe uma noite no chalé do Ateliê Xakra, para que você possa acordar e iniciar o dia preparando seu café da manhã com a culinarista Josi. E não acaba por aí. A proposta seguirá ao longo do dia, com o preparo do almoço, os cuidados com a horta, com o jardim, entre outros saberes e fazeres. A proposta é reservar um dia para andar pelo mato, conhecer as ervas e encontrar no quintal propostas interessantes de produção.

A experiência acontece no Ateliê Xakra, que é um espaço singular, que convida o visitante a experimentar em um ritmo de vida desacelerado e permeado por bons encontros. Joseane Jorge e Benedikt Wiertz misturam seus talentos criando experiências em que o tempo oferece uma pausa para você conhecer, experimentar e se apaixonar pelos alimentos de fermentação natural e pela cerâmica.





Da cozinha-ateliê surge comida que gera saúde! São chucrutes, kimchis, pães e outras delícias! Do ateliê de cerâmica nascem peças únicas que aquecem a alma e os alimentos! Só resta vir e se encantar com as maravilhas que esse casal prepara diariamente para vocês!  
 
SERVIÇO:

(31) 99796-1643/ (31) 99313-6255
 @ateliexakra
 atelierxacra88@gmail.com 


Veios da terra 



Brumadinho, localizada em Minas Gerais, é um importante reduto da cerâmica artística e utilitária no Brasil. Com uma paisagem rural deslumbrante e cercada por montanhas, a cidade abriga dezenas de ateliês onde artistas de diversas partes do país se inspiram na natureza para produzir peças únicas, originais e belas.


A tradição ceramista de Brumadinho teve início com os povos originários, como indicado pelos cacos de cerâmica indígena encontrados na região. Na década de 1970, a artista japonesa Toshiko Ishii mudou o cenário da cerâmica em Minas Gerais ao se estabelecer na cidade e passar a produzir peças marcadas pela pesquisa, intensa relação com o território, a natureza, a poesia e o tempo. Seu trabalho influenciou uma nova geração de artistas que se estabeleceram em Brumadinho e que continuam a ser inspirados pelo legado deixado por ela.






Um exemplo é o ateliê Saracura 3 Potes, liderado pelo casal de artistas José Alberto Bahia e Jéssica Martins, que transforma cascas e sementes brasileiras em peças de arte. Eles escolhem elementos que estão associados a alguma memória nacional, como as cascas brasileiras que são objetos utilitários nas casas dos sertanejos e na vida indígena, as latas de sardinha que já foram fôrmas de bolos na infância e os copos lagoinha tão cheios de vida boêmia. Para Bahia e Jéssica, é o uso que dá dignidade para a cerâmica.




Para conhecer a riqueza de Brumadinho



Para quem quer descobrir mais sobre a cerâmica de Brumadinho, uma boa dica é consultar o recém-lançado catálogo Céu de Montanhas. Com curadoria do designer mineiro Ronaldo Fraga e realização da Vale, a publicação apresenta vivências em cinco renomados ateliês de cerâmica, além de outras 23 atividades de turismo rural e de base comunitária no município de Brumadinho. Os interessados podem, por exemplo, produzir suas próprias peças de cerâmica, participar de processos de queima ou aprender a cozinhar usando utensílios de cerâmica.
 
Daniele Teixeira, analista de sustentabilidade da Vale e coordenadora do Céu de Montanhas, explica que o trabalho começou com um diagnóstico. “Por meio de oficinas e visitas, pudemos entender como era a oferta, a situação e as possibilidades de cada empreendedor naquele momento. A partir daí, as vivências foram sendo desenhadas e aprimoradas e uma grande riqueza de Brumadinho vem ganhando visibilidade”.





Segundo Daniele, o catálogo foi pensado para diversificar e sistematizar a oferta de turismo rural e base comunitária da região e facilitar o acesso do turista aos atrativos. “Nossa ideia é fechar parcerias com grandes operadoras do país, além de comercializar as vivências de forma online. Essa ação busca ampliar o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho e fortalecer a contribuição do turismo para a economia local”. 

O catálogo integra as ações de um programa de fomento ao turismo sustentável e é resultado de um amplo trabalho de mapeamento, assessoria técnica e sistematização da oferta de turismo rural e de base comunitária na região. Durante mais de um ano, Ronaldo Fraga e uma equipe multidisciplinar atuaram com os empreendedores da região a fim de identificar e aprimorar os potenciais locais. Com o lançamento da coletânea, disponível no site www.ceudemontanhas.com, a ideia é facilitar o acesso dos turistas aos atrativos da região.