Bem próximo de Belo Horizonte, o Circuito de Quilombos de Brumadinho é uma das 40 experiências turísticas do catálogo Céu de Montanhas. No início do mês de setembro, visitamos a região e, no turismo de hoje, vamos mostrar a vivência sensorial nas comunidades. São lugares sagrados, abertos ao público mediante agendamento prévio, que proporcionam aos visitantes uma experiência repleta de música, religiosidade, boa comida e histórias fascinantes.
A programação dá início no Quilombo de Sapé, com direito a um café da manhã feito pela comunidade, com apresentação de dança e muita música. A segunda parada do circuito foi no Quilombo de Rodrigues, onde o grupo de percussão Negro por Negro recebe os visitantes com muita animação. Lá, o visitante vai aprender passos de dança, conhecer a história da comunidade e experimentar drinks preparados com ingredientes locais pela Chef Marcela Azevedo. No Quilombo do Ribeirão, os turistas são recebidos por Jaime Ferreira, um morador local e guia turístico. Ali, eles mergulharam na cultura quilombola através da música, da dança e de uma tradicional feijoada. Em Marinhos, o mais antigo dos quatro quilombos, uma roda de bênçãos conduzida pela matriarca Dona Nair, os visitantes se despedem dos quilombos.
Esse evento turístico é uma iniciativa de turismo rural e comunitário desenvolvida pela Vale em parceria com o designer Ronaldo Fraga e a especialista Miriam Rocha. Segundo Daniele Teixeira, analista de Sustentabilidade da Vale e coordenadora do projeto Céu de Montanhas, o catálogo foi pensado para diversificar a oferta da região e facilitar o acesso do turista aos atrativos. “Essa ação busca aumentar o tempo de permanência do visitante que vai a Brumadinho e fortalecer a contribuição do turismo para a economia local”.
As vivências do catálogo Céu de Montanhas são comercializadas pelo receptivo HT Happy Travel ou diretamente no site do Céu de Montanhas
Café da irmandade
"Somos todos uma família. Que se cuida, protege, e acolhe. Uma irmandade que tem as bençãos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito nos guiando. Tá bonito de ver o terreiro daqui em festa. Que venham todos tomar o café com a gente. A casa sempre estará aberta"
Vó Elza, matriarca do Quilombo de Sapé
Sentada debaixo de uma grande árvore bem ao lado do sino da Igreja de São Vicente de Paula, Dona Elza, acompanha a chegada dos visitantes. Diante dela, uma mesa com quitutes genuínos mineiros foi delicadamente montada e decorada para celebrar o café da manhã. Pão de queijo, kubu ( broa de fubá assado na folha de bananeira), biscoitos de polvilho, bolos de milho e banana, queijadinha de mandioca com queijo. Para beber, café coado na hora, adoçado com garapa e sucos de frutas da região como limão-capeta, maracujá e mexerica. Delícias feitas por mãos cuidadosas da comunidade para aquele primeiro banquete do dia em parceria com o chef Edson Puiati. Para a matriarca do Quilombo de Sapé, em Brumadinho, o Circuito dos Quilombos é uma oportunidade de reviver a comunhão em família. Foi a possibilidade de estreitar os laços e de se entregar aos abraços.
Na sequência, o chão sagrado se desperta ao som de batuques e tambores. Mulheres do grupo de dança Sorriso Negro se apresentam para os turistas, que vieram de várias partes do Brasil. O canto de luta e resistência, potencializado pelos movimentos do corpo de uma beleza negra sem igual, é a herança ancestral de um povo que chegou escrazidado no Brasil, quebrou correntes e hoje, conquista seu lugar na sociedade atual – são, sim, rainhas e princesas que merecem nossos aplausos e reverência. Entre elas, Juliane Aparecida Silva, Michelle Lorraine Silva, Gisele Núbia Santana e Silvânia Aparecida Oliveira Pinto que, soltaram a voz e, com um grito de louvor, reafirmaram o orgulho da cor da pele e do cabelo crespo.
Instagram: @quilombodesape
Negro por Negro
"Antigamente, eu vivia esticando meu cabelo com chapinha. Hoje, tenho orgulho do meu cabelo crespo. Fizemos da dor de nossos antepassados africanos escravizados para escrever letras de músicas que glorificam a nossa cor de pele. Somos pretos e temos orgulho disso!"
Dina Braga, líder do Quilombo de Rodrigues
Hora de conhecer as tradições do Quilombo de Rodrigues. Outro território negro onde um cuida do outro. Quem vive neste lugar sagrado reverência a família, a natureza, as tradições culturais e religiosas e promove a resistência e tem muito orgulho de ver suas origens preservadas e divulgadas. Reconhecido pela Fundação Palmares, o quilombo desenvolve projetos culturais de dança, música, confecção de instrumentos musicais como o xequerê( feito de cabaça) e produtos artesanais como pulseiras, terços e cordéis feitos com a semente da lágrima de Nossa Senhora. Tudo feito à mão, e quem visita o local pode confeccionar e levar pra casa sua própria bijuteria.
O Grupo afro Negro por Negro já realizou apresentações em diversas cidades mineiras, e no ano passado fez um tur pelo Nordeste. Alguns componentes têm função importante nas guardas de Congo e Moçambique da região. Com percussão marcante, o grupo usa tambores, xequerê, atabaques, violão, cavaquinho e gungas, cantam canções próprias e outras retiradas das tradições africanas da República Democrática do Congo e de Moçambique. Se a música encanta, a manhã teve como refresco drinks ( com ou sem álcool) preparados pela pesquisadora e mixologista molecular Marcela Azevedo, que há mais de 10 anos cria bebidas refrescantes com ingredientes colhidos nos quintais, com plantas comuns do dia-a-dia como funcho, alecrim, manjericão e os transforma em elixir de pura alquimia de prazer.
Instagram: @identidade_quilombola
Alimento da alma
"Deus te trouxe aqui/ Para aliviar os teus sofrimento/ É Ele o autor da Fé/ Do princípio ao fim/ Em todos os seus tormentos/ E ainda se vier noites traiçoeiras/ Se a cruz pesada for, Cristo estará contigo/ O mundo pode até fazer você chorar/ Mas Deus te quer sorrindo"
Noites Traiçoeiras, na voz das 'cigarrinhas dos quilombo'
“Sejam bem-vindos… só estava faltando você”. Chegou a tão esperada hora do almoço no Quilombo do Ribeirão. Em um restaurante simples, um caldeirão de feijoada era colocado na mesa de apoio. Ao lado, outra panelona de arroz e travessas de couve, laranja e farofa. Uma comida brasileira para fazer daquele encontro um dia especial. O tempero estava na medida e as porções de gordura dos pedaços de porco na quantidade, digamos, recomendada por qualquer cardiologista. O prato, que teve como origem uma iguaria criada por negros escravizados, surgiu em terras brasileiras no Brasil colonial. A cada garfada, sabores ancestrais eclodiram no paladar provocando uma sensação de prazer. Alguns visitantes repetiram mais de uma vez e saciaram a vontade de provar a culinária simples que toques de amor como tempero. E para fechar a comilança, que sobremesa! Convidada para o evento, a renomada chef Tainá Moura deu uma consultoria e preparou uma delícia levemente adocicada feita com mousse de queijo, mexerica e farofa de rapadura.
Durante todo o banquete no ‘Palácio’’ os presentes ouviam, ao lado, as vozes singelas das ‘cigarrinhas do quilombo’. Formado por moradoras da comunidade, as divas cantoras soltavam, à capela, cânticos tradicionais de Minas e louvores religiosos como Noites Traiçoeiras:. Essa música era o prenúncio do que estavam todos a experimentar no próximo e último quilombo visitado.
Bençãos de Maria
"O meu colchão é areia, meu cobertor, as ondas do mar. Quer escutar a minha benção? Para Jesus abençoar"
Dona Nair, benzedeira do Quilombo de Marinhos
Feche os olhos, respire fundo. Imagine ouvir o som ao redor: assobios e grunhidos de maritacas, bem-te-vis e pica-paus. Tente ouvir o vento balançando as folhas. Sinta o cheiro da grama, das flores da grande mangueira e do pé de carambola. Agora, abra os olhos, tente ver o pôr do Sol, se despedindo atrás das montanhas após um dia intenso de emoções. Nesse exato momento, naquela hora mágica, dará o início do melhor do Circuito dos Quilombos e, também, o fim de uma maratona que se iniciou em um café da manhã, se prolongou por visitas em abrigos fraternos onde cada habitante desses quilombos são reis e rainhas do lugar agora, se concretiza, com a benção do Maria.
Ao lado da Igreja de Nossa Senhora, Dona Nair, mãe-rainha benzedeira do Quilombo de Marinhos, flutua sobre o chão sagrado do terreiro do lugar. Em sua apresentação inicial, ela fala das dificuldades que o povo da comunidade já passou e ressalta a importância dos laços familiares para se manter vivos e unidos: “Teve um tempo que não tínhamos nada pra comer, e a fome era um tormento. Foi então, que percebendo a dor do flagelo que não poder levar a comida à mesa, irmãos e irmãs da comunidade se uniram, trouxeram o alimento que tinham em seus quintais como milho, feijão, quiabo e mandioca e, deste gesto de amor e solidariedade, nasceu a apresentação da Dança da Colheita, uma forma de agradecer o alimento recebido”.
E nesse terreiro, ela inicia sua benzeção. Mas antes, Dona Nair relembra: “teve o caso de uma mulher em estado terminal de câncer, que estava desenganada pelos médicos, que ao ouvir a bênção, se viu curada. Não sou eu que promove a cura. Mas, ele, que está lá no alto, acima de todos nós. Foi a fé dela em acreditar no poder divino que a fez se curar e hoje ela está bem”. E como se estivesse em transe, a voz entoa cânticos reconfortantes que dizem promover milagres.
Instagram: @inspiracaoquilombola