Ao sentar-se para dar entrevista, na tarde de uma quarta-feira, no Teatro Alterosa, Dulce de Melo Rosa, de 83 anos, mira fundo os olhos do entrevistador. Mas, quando a câmera é ligada, é para lá que vai, quase atraído por um imã, o olhar de Tia Dulce. Esta senhora de voz doce poderia ser só mais uma de cachecol vermelho e saia florida, não fosse dona de um legado da televisão, com o lendário programa infantil Clubinho da Tia Dulce, que celebra, em 2019, 40 anos desde a estreia na TV Alterosa. "Sempre fui assustadoramente atrevida", define.
Para comemorar a data e contar apropriadamente este capítulo da história, o Estado de Minas e a TV Alterosa fizeram um especial na sede da TV. Do Centro de Documentação do jornal vieram as imagens de arquivo. Convidamos Tia Dulce, hoje aposentada após trabalhar 27 anos como assessora parlamentar na Assembleia Legislativa, para recordar os detalhes. Ela comandou por 10 anos (entre 1979 e 1989) um programa diário que marcou uma geração de fãs e lotava o Mineirinho nas edições históricas de comemoração do aniversário da atração e do Dia das Crianças.
Quando o telão se enche com a imagem da abertura do programa, Tia Dulce mostra que ainda se lembra de cada verso da letra do “hino” da atração. "Não tem como esquecer não, uai. Encontro até hoje gente na rua que se lembra do Clubinho, me reconhece. É um carinho imenso". Com o trabalho para crianças, ela alcançou o estrelato e chegou até mesmo a receber convites para sair de Belo Horizonte – recusou todos e seguiu a vida.
Mas o sucesso de Tia Dulce estava predestinado nas Gerais. O Clubinho nasceria no corredor da TV Alterosa, então no Edifício Acaiaca. A própria Dulce cuidou do cenário (com cartolinas desenhadas a guache pelo filho pequeno e ursos e cachorros de pelúcia). Diante de uma só câmera, entrou no ar ao vivo para "conversar com as crianças", chamar os desenhos animados que já faziam parte da programação matutina. "Na hora de fazer o programa, o pessoal tinha que parar de bater máquina e atender telefone, senão atrapalhava", conta.
De macacão jeans
A apresentadora/produtora/figurinista/cenógrafa instituiu como "uniforme, o macacão jeans e trocava a camiseta de baixo, "amarrava 'uns trem' na cabeça e tal". Foi Fernando Sasso, então diretor da TV Alterosa, quem batizou a personagem de "tia", para aprovação da apresentadora: "Com menos de um mês, já tinha recebido mais de mil cartas e a televisão só pontuando, porque eles repetiam o programa toda hora que podiam. A coisa pipocou de tal maneira que fiquei assustada. Começou a fazer fila no corredor do Acaiaca, pra subir para 24º andar".
O sucesso ela também explica: "Coloquei uma grande dose de amor, de alegria e de igualdade. Porque você não pode esperar a criança chegar até onde você está. Tem que chegar até ela: eu sentava no chão, agachava, punha no colo. Se uma criança puxava o meu macacão, interrompia o programa e era hora de dar atenção ali para aquele menino."
Ao fim daquele ano, a TV Itacolomi sairia do ar e Tia Dulce viria para o prédio onde até hoje funciona a Alterosa, no Bairro Floresta, Região Leste de Belo Horizonte. "E aí, o Clubinho foi só crescendo, a maior audiência da televisão mineira. Graças a Deus!", diz. E emenda, olhando e mandando um beijo para a câmera: "E a você que está aí! Muito obrigada!"
Que fim levou?
Em 1989, o Clubinho da Tia Dulce saiu de férias e nunca mais voltou ao ar. Mas Tia Dulce ainda tem um desejo: "Lamento que não uma oportunidade para me despedir. Amigos vivem dizendo que precisamos fazer uma nova edição comemorativa, quem sabe no Mineirinho, para reunir quem amou aquele programa por tanto tempo. Tenho saudades. Quem sabe?"
Recordações de Tia Dulce
A trajetória de Tia Dulce, a eterna apresentadora do Clubinho, revela força incomum. Ela nasceu em Nova Lima, teve infância de muita brincadeira e contação de histórias, "muita farra" com os irmãos: "Meus pais tiveram uma penca de oito filhos". Antes de comandar a atração coqueluche das crianças (e famílias) mineiras por uma década na TV Alterosa (entre 1979 e 1989), ela ia à missa na Igreja São José “barrigudíssima” do filho de um namorado com quem nunca se casou – estamos falando da Belo Horizonte dos anos 1950.
Em meados dos anos 1956, Dulce trabalhava em repartição pública e como bilheteira de cinema. Ela conhecia televisão de ver, ao passar de bonde, as pessoas maravilhadas diante das lojas com vitrines reluzindo o revolucionário eletrodoméstico que seria protagonista das salas de estar dos brasileiros nos anos seguintes: "Nem sabia o que era televisão, nunca tinha visto de perto, quando comecei a trabalhar com aquilo".
Dulce Maria entrou na TV por causa de uma apendicite e de uma geladeira, em 1956. Ao acompanhar no hospital uma amiga que se recuperava de uma cirurgia, recebeu ali a visita de um amigo em comum das duas: Mário Veras, à época um dos diretores da TV Itacolomi. Veras estava à procura de uma apresentadora para uma revista feminina, patrocinada por marca de eletrodomésticos. Chamou Dulce para o teste e, no dia seguinte, lá estava ela elogiando uma geladeira da loja Floriano Nogueira da Gama, "sorrindo até aqui, do meu jeito". Gostaram da performance e ela foi contratada. Dias depois, apresentava o Seção feminina, a tal revista.
Fraldas ao vivo na TV
Em um dos comerciais que ela tinha que fazer, levou uma afilhada e inventou de trocar as fraldas da menina ao vivo. "Foi uma inovação que eu trouxe e o negócio estourou, marcou muito!", diz. Dali, Tia Dulce começou a apresentar programas infantis. Trabalhou também por 15 anos com rádio prestador de serviço, no programa Rádio rural, o som verde, apresentando o Dulce Maria receita de mulher, na Rádio Guarani. Foi quando trombou nos corredores com o narrador Fernando Sasso, um dos diretores da TV Alterosa, preocupado com a audiência. "Ele me disse que precisava de alguém para humanizar a programação e me chamou para essa missão de conversar com as crianças". Deu certo! O Clubinho da Tia Dulce marcou época e, 40 anos depois, ainda está no imaginário de uma legião de fãs.