“‘Papai, o que é um desastre?’ ‘Théo, desastre é um evento muito triste que acontece. Algumas pessoas morrem. Nem é bom pensar em desastre não. (Depois), o Theo, de 6 anos, conversava com o aplicativo de telefone: ‘Siri, o que é um desastre?’ ‘Siri, quanto tempo a pessoa fica num desastre?’ Ele começa a entender que um desastre tira o pai dele de casa.
Todo mundo que esteve em Mariana viveu mistura de sentimentos: o cheiro, o som, a visão da lama. As pessoas envolvidas, morte trágica, de magnitude muito grande, o próprio dano ambiental. Tudo mexe com o nosso psicológico. Ficamos sete, 10 dias direto em ambiente bem estressante.
Depois que a Barragem de Fundão se rompeu, senti que tinha responsabilidade com essa questão de desastre. Tinha de me preparar não só técnica, como psicologicamente. Estava fazendo mestrado e minha dissertação foi sobre a área de desastres. Tive a oportunidade de fazer curso no Japão e de ir ao Chile fazer curso nessa área. Costumava brincar que me especializava para o impossível. Jamais aconteceria cenário como aquele de Mariana.
Em 25 de janeiro, (eu) o capitão estava de férias, de barba grande. Era um dia ensolarado. Eu, minha esposa e dois filhos tínhamos planejado ir ao clube. Recebi mensagem no grupo: 'Uma barragem tinha rompido'. Num primeiro momento, não dei muita importância. De Mariana para cá, vários alardes de barragens se rompendo foram dados e, muitas vezes, era um açude, locais que não tinham tanto risco. Começaram a chegar informações. Era o Córrego do Feijão, a barragem da Vale.
Meu comandante me ligou: ‘Farah, vou precisar do seu apoio lá’. Renata, minha esposa, perguntou: ‘Sabe quanto tempo você vai ficar?’. ‘Não faço a mínima ideia’. Fiz a barba rápido e ela disse: ‘Léo, vai lá. Tem muito mais gente precisando de você do que a gente agora’.
A viatura me pegou no meio do caminho (em Nova Lima). Os militares, via rádio, disseram que não tinha acesso por terra. Uma aeronave da Polícia Civil nos pegou na Serra do Rola-Moça. Começamos a sobrevoar a região. Quando olhei, foi como se estivesse vendo tudo de novo. A mesma cena: poeira alta, lama subindo. ‘Não estou acreditando. De novo?’.
Pensei em fazer a mesma coisa de Mariana: ir para a frente da lama, tentar ver algum local que não tivesse sido atingido, ver alguém que estivesse precisando de ajuda e evacuar a localidade. Começamos a voar. Voar rápido. Chegamos ao Paraopeba. O barulho ainda veio. A cena, que para a gente foi num primeiro momento ruim (em Mariana) – as pessoas não sabendo do rompimento –, desta vez não tivemos essa felicidade. Estava tudo destruído.
Pedi ao piloto para refazer o caminho num voo bem baixo. Víamos as pessoas nos veículos, acenando na lama. Era tirar as pessoas, embarcar na aeronave e tentar encontrar mais. Ao mesmo tempo, precisava organizar todo o cenário. Não sabia se o rejeito era tóxico ou se não era. Nessa hora, não se pensa nisso. Nosso lema é entrar na lama, onde for (necessário) para retirar as pessoas. Mesmo com o sacrifício da própria vida. Foram tantos salvamentos, que não consigo me recordar dos momentos exatos.
Acreditava que Mariana tinha sido meu dia D. Meu dia D está mudando para um ideal D, para um propósito. Mudei. Quis melhorar, aprender mais. Apesar de realmente pensar que isso não ia acontecer novamente, tinha uma força que dizia: ‘Continua. Vai valer a pena’. Mariana me ajudou muito a crescer como profissional, como pai, como homem, como bombeiro, como amigo. Em um segundo a gente perde tudo, mas, em um segundo, conseguimos salvar muitas pessoas.
Em Mariana, num primeiro momento, quando chegamos, as informações eram mais de 100 crianças soterradas numa escola. O número inicial (em Brumadinho) era mais de 300. Então, minha esperança toda era que tudo se repetisse. Eles falavam que eram 300. Mas eu pensava: ‘Não vai ser tanta gente’. Vão ser menos pessoas. A experiência de Mariana mostrou que pode ser que esse número diminua.
Em Brumadinho, teve o impacto ambiental, mas a perda de vidas…
No refeitório, falavam que tinham 50, 100. Tinha outra estrutura que foi completamente destruída. Falavam que eram mais de 300 pessoas desaparecidas. Ainda batia aquela esperança: ‘Vai diminuir’. Com o passar dos dias, esse número não diminuía e isso me impactou muito.
Em Mariana, foram 19 e nós encontramos 18. O grande fator que me incomoda é o homem que a gente não encontrou, o Edmirson. Quantos vamos ter agora? Quero dar conforto para a família.
Nessa operação, aprendi algo fenomenal com os israelenses que vieram. O coronel Golan me requisitava muito, me dava muita dica. Algo me incomodava: ‘Coronel, quando que eu vou parar?’. Em Mariana, teve uma hora em que a gente teve de parar. A resposta dele foi muito sábia: ‘Faça o seu melhor e só pare quando o seu coração mandar’.
Meu coração não está mandando parar agora. Está inquieto com isso tudo. Uma hora a gente vai ter de parar. Seja quando encontrarmos todos os corpos, se Deus assim quiser. É o que gostaria de passar para as famílias. Ou seja por outros fatores, que não quero pensar agora. Meu coração me manda parar quando encontrar todos os corpos. Com isso tudo acontecendo novamente, não fico pensando como me preparar, fico pensando quando vai ser o próximo.”