“De repente, eu fiquei com a roupa do corpo, sem minha casa, sem minha mulher, com desafio de, aos 64 anos, construir minha vida. Como se estivesse renascendo nos braços dos meus amigos. Nu, com 64 anos, eles me deram roupas, me acolheram em suas casas. Vou construir meu caminho. Não sei como, mas vou. 'Eis me aqui, Senhor'. Saí de casa uma hora antes, então, estou aqui, disponível. O que tenho que fazer? Qual meu compromisso nesta vida? Eu tenho um compromisso, eu preciso descobrir ainda, pois intuitivamente não está claro.
Eu preciso me dedicar a coisas fundamentais, não quero viver uma vida como escravo do trabalho, construir coisas que não têm valor. Minha casa tinha em torno de 18.000m² de área total. Jardins com bromélias, orquídeas, ambientes com cascatas, com carpas, viveiro para marrecos, para araras, todo em blindex. Um galinheiro de alvenaria, com desenhos de São Francisco de Assis.
A Sirlei era muito caprichosa, gostava demais dos animais, tinha uma lhasa de 8 anos, que era uma integrante da família, e um rottweiler, que ficava no quintal. Tinha seis pavões soltos, um casal de faisão dourado, um prateado, 12 angolas, tudo solto. Bromélias, buganvílias, orquídeas. Minha esposa passava o fim de semana com tesoura na mão, eu carregando carrinho de areia de solo orgânico.
Passei 30 anos construindo o lugar onde eu ia me aposentar. Já estava com minha varanda pronta, só faltava cadeira de balanço. Em 70 segundos, desapareceu. Tinha uma adega com mais de 300 garrafas de vinhos, de todo lugar do mundo, uísques de excelente qualidade, uma casa maravilhosa, com luxo, ofurô no jardim, piscina com água quente, uma cozinha gourmet. Uma coisa que não vale nada, não tem significado, não tem valor genuíno porque, de repente, desaparece tudo. E desaparece materialmente.
Caixão não tem gaveta, a gente não leva nada que tem aqui. O que é isso? Está tudo errado. Tem que promover solidariedade, amor. É muito piegas, mas não tem outra alternativa não. Isso tudo é uma bobagem cultural. Somos fruto dessa formação que nos obriga a trabalhar, trabalhar, ter sucesso, ser reconhecido. Vaidade, um pecado capital, mais um.
Tenho formação em engenharia geológica. Há 28 anos, trabalho com mineração aqui em Brumadinho. Quando fui convidado, a casa que me foi oferecida ficava às margens de uma lagoa. Em 1995, mudei para a casa em que morei até uns dias atrás. Até o momento que ela (Sirlei) surgiu na minha vida (em 2006), eu plantava amendoim, feijão, mandioca. Ela trouxe uma visão mais de jardim.
Sirlei tinha, fundamentalmente, por referência materna, um grande amor pelas pessoas. Era de uma sensibilidade fraterna muito particular. E fazia de coração, era uma coisa que não tinha obrigação, não fazia como um dever. Ela fazia porque tinha que fazer. Ela encontrava pessoas com dificuldade, ajudava. Era apaixonada com os animais. Nós não tivemos filhos, ela se dedicava às crianças da comunidade, do abrigo do município.
Era uma pessoa que tinha um perfil bastante humanitário. Eu tenho ouvido muita conversa na mídia sobre ser inimiga da mineração. Isso é mentira. Nunca teve postura de pôr fogo em porta de mineração, pôr fogo em ônibus, protestos sem fundamento. Era inteligente, sabia conversar, negociar. Tanto que, quando negociava com a empresa, era com lógica, buscando parceria, não confronto.
Conseguiu para o Córrego do Feijão a sede comunitária. Está lá, os bombeiros estão usando. A associação foi ela quem estruturou para ter voz. No Dia das Mães, fazia jantar, sorteava brindes. No Dia das Crianças, fazia a mesma coisa, promovia festa junina, o arraial, o forró do Córrego do Feijão, que ela servia de garçonete e eu de garçom. Porque não tinha como não se envolver. A energia dela envolvia(...)
(No dia em que foi encontrada) ela estava com a cachorra no colo. A cachorra não saía do lado dela. Ela sentava, a cachorra sentava. Ela levantava, a cachorra levantava. Era uma comunhão fantástica. Ela certamente abraçou a cachorra e fugiu para um ponto que provavelmente não teve tempo de fuga.
Fez tanta coisa que cumpriu o dever dela nesta terra. Saía às 7h e chegava às 23h. Eu comentava com ela: 'Tem 13 anos que estou te esperando, eu fico te esperando'. Falei para ela: 'Te pago em dobro para você ficar aqui'. Ela nem me deu resposta. Fazia porque queria, não pelo salário. Era por amor, vocação. Aquela coisa que vem de dentro e não tem como segurar.
Espero que ela esteja com a mãezinha dela, que ela tanto queria encontrar. Eu só agradeço por ter tido ela em minha vida. E por ter me apaixonado por ela.