“Foi muito sacrificante. Aquele choro e a gente fechando a boca do túmulo querendo chorar também. Pessoas começando a desmaiar, passando mal e a gente não podia largar o serviço para ajudar. Eu pensava: 'Tenho que segurar a barra, tenho que fazer o serviço'. Dos 28 sepultamentos, eu conhecia umas 14, 15 pessoas. O 280 (número do túmulo) ali foi meu vizinho, o Glayson. E vários outros que eu conheci, presenciei, vivenciei com eles o dia a dia.
A gente conviver com choro, as lamentações daquelas famílias próximas é a mesma coisa que se eu fosse da família. Para mim, é uma situação difícil. Às vezes a gente chega em casa, fica pensativo. Às vezes sonha. Minha esposa chega e fala: 'Atenagos, você está sonhando com morto?'. Porque a gente acorda assustado, pensando em um telefonema, pessoas ligando para saber informação de um parente. Eu penso no outro dia: 'Será que vai chegar mais corpos amanhã? Esses helicópteros passando, será que é um corpo passando ali? ' Tudo isso a gente pensa e já acorda cedo, preocupado. Eu gosto do que faço. Não faço com má vontade, não xingo. Minhas coisas, gosto de fazer bem feito.
Nasci em Marinhos, no distrito de São José do Paraopeba. Eu vim da comunidade quilombola Sapé. É uma comunidade pequena, com origem do pessoal de escravo, que saiu da fazenda dos Martins, concentrou nesse local e fez suas casas de sapê. E foram gerando família. Tenho 63 anos, casado há 40 anos com Beatriz Silva de Jesus, pai de seis filhos: Emerson, Elivélton, Eberson, Cassiano, Marcos Paulo e Cleicinara. Um neto e uma neta.
Eu trabalhava em São José do Paraopeba, quando fui presenciar o sepultamento de uma parente da minha esposa. Tive de tirar a roupa e terminar de cavar o buraco. Eles não sabiam ou não deram conta de furar na metragem certa e tive de entrar e fazer. A partir disso, vieram aqui, conversaram com o prefeito e me perguntaram se eu me interessava em seguir esse caminho. Fiquei dois anos em São José do Paraopeba como zelador. Então, passei a fazer a marcação na metragem certa, que é 2,20m de altura, com 90cm de largura e 1,50m...1,60m de profundidade.
Em 1999, eu vim (para Brumadinho), conversei com o José Márcio, que era vereador. Ele me arrumou um caixote, um livro, comprou uma caneta, papel, aí passei a arquivar todo sepultamento. Esse aqui é o cemitério municipal velho ou central. É o principal de Brumadinho. Até o momento, deve chegar em quase 700 jazigos. Pela data das placas, recebe sepultamentos desde 1929. De 2000 para frente, dá um total de 96 a 110 sepultamentos por ano, juntando esse cemitério aqui e o Parque das Rosas.
Naquela sexta-feira, eu estava fazendo um trabalho de limpeza. Era 12h30 e chegou a mensagem: 'A barragem lá desabou, rompeu'. Aí, liguei para meu colega, que a gente conhece como Zé Coco. Liguei e não atendeu. Aí pensei: 'Alguma coisa aconteceu.' Ele é gente muito boa, trabalhador. Até hoje está desaparecido. Meu sobrinho sobreviveu por poucos segundos. Os colegas deles que foram almoçar, não voltaram. Graças a Deus, meus parentes conseguiram se salvar. Mas aquele que é meu vizinho, amigo, me cumprimenta na praça, faz parte da minha vida.
Aqui foram uns cinco sepultamentos em um só dia. Eu e meu amigo, o Denílson, tivemos a ajuda de voluntários, que deram muita ajuda. Era um sepultamento atrás do outro. Eles me passavam os dados e eu fazia o anúncio pelo microfone. A gente tinha de anunciar, preparar, enquanto o outro colocava na gaveta, às vezes era no chão.
Sepultar é importante, porque tira o problema da cicatriz, da ferida de não saber se o filho foi sepultado. Acalma o sofrimento da família saber que fez o sepultamento. Saber que ele está ali, para fazer homenagem no Dia de Finados. Será que eles vão colocar cruz na lama? Fazer um museu, uma coisa histórica em homenagem às vítimas? Isso vai passar, mas a cicatriz da família não vai acabar, porque esse tipo de acontecimento é a mesma coisa que cavar um buraco na vida das pessoas. Não há dinheiro nenhum que pague a vida. Porque essas crianças que esperavam seus pais chegar em suas casas, o que eles vão pensar daqui a quatro, cinco anos? Eu não vi meu pai, ele não chegou. Isso é uma lamentação muito forte.
Peço a Deus que dê o conforto, o segmento da vida, a paz, harmonia, compreensão e entendimento. Brumadinho acabou? Não. Brumadinho vai seguir a vida e todos que moramos aqui temos a esperança de vida nova.”