“Um comandante bem próximo a mim, que foi meu padrinho de casamento, uma vez me disse que pilotar não era coisa para mulher. Exemplificava que, se eu fosse mãe e estivesse em atendimento, uma missão, se, por acaso, meu filho tivesse um problema, ele tinha certeza de que eu abandonaria tudo e voltaria para atender o meu filho.
Em 25 de janeiro, estava de serviço no Batalhão Operações Aéreas, escalada para atender ocorrências que necessitassem de empenho da aeronave. A primeira solicitação feita para os bombeiros sobre essa ocorrência do rompimento de barragem foi às 12h37. Parei de almoçar e me encaminhei para o pátio. Enquanto chegava à sala de operações, ele já tinha ligado para a solicitante para confirmar o que tinha acontecido. Uma pessoa chorando informava que tudo tinha sido levado pela lama.
Enquanto acionava os tripulantes operacionais e o restante da equipe, já pegava as coordenadas geográficas precisas do local pra gente atender. A solicitação entrou às 12h37, e por volta das 12h53 já estava sobrevoando o local com cinco pessoas: tenente Sávio, médico doutor Martin, enfermeiro Rodrigo, mais dois tripulantes operacionais, que são o subtenente Gualberto e o sargento Welerson. Fomos os primeiros a chegar. A partir do deslocamento no caminho que a lama seguia, avistamos uma locomotiva retorcida, tombada. O pontilhão tinha sido levado, casas tinham vindo abaixo.
A ideia era resgatar o maior número de pessoas que a gente conseguisse. Recordo-me do tripulante operacional ter dito: ‘Chefe, o que tinha aqui foi levado. Se o pontilhão foi levado, não tem rastro de nada aqui.' A gente fez o sobrevoo até o Rio Paraopeba para ver se conseguia avistar pessoas pedindo ajuda e também para entender a extensão. Voltamos e as pessoas continuavam a chamar a aeronave.
Em determinado momento, dois rapazes entraram na lama. À medida que acompanhava o deslocamento deles, conseguimos identificar uma das vítimas ali. Uma equipe de reportagem chegou sobrevoando. Posicionei a aeronave, quando avistei a vítima na lama e os dois rapazes, que se dirigiram a ela. A estratégia foi posicionar a aeronave o mais próximo possível dessa moça. Era visível que ela tinha uma fratura de fêmur. A impressão era que estava se afogando na lama e estava bem debilitada. Estava com dificuldade de se mover. Posicionamos a aeronave próxima e a estratégia era o tripulante desembarcar, carregar a vítima para dentro da aeronave, colocar dentro para ser assistida pelo médico e enfermeiros que estavam próximos.
O tripulante operacional permaneceu embarcado e ia me dando informação se a aeronave estava próxima ou não do obstáculo, se estava baixa ou alta. Não poderia ficar muito alto, senão não conseguiria colocar a vítima dentro da aeronave. Tudo feito de forma bem sincronizada.
A operação naquele dia durou até o pôr do sol. Quando cheguei em casa, a sensação era de que talvez tivesse mais gente viva que não tivéssemos conseguido visualizar. A lama camufla as pessoas. Fica tudo marrom. Tudo em situação de lama. É difícil visualizar uma silhueta. Se a pessoa não se mexe, se estiver muito debilitada, fica difícil saber se tem alguém precisando de ajuda ou não. Confesso que isso me incomodou um pouco. No dia 25, foram ‘voadas’ muitas horas por todas as aeronaves no local, voos rasantes, à baixa altura. No dia seguinte, as buscas continuaram de forma acelerada e intensificada.
(O momento) exige consciência situacional. Em determinada altura e velocidade, consigo efetuar determinadas manobras de emergência. Exige conhecimento prévio do equipamento e avaliação da situação como um todo, proficiência técnica que é obtida através de treinamento, de horas de voos, de experiências anteriores em atendimento. Naquela atuação, tem manobra que exige cuidado maior. Não é coisa que se faz normalmente, rotina de trabalho. Estava voando baixo. Se a aeronave tivesse qualquer problema no motor, problema de potência, não ia conseguir arremeter. Teria que pousar no pouso corrido à frente, mas tinha obstáculo próximo.
Tinha que lidar com obstáculo para o esqui do helicóptero não se prender num tronco de árvore e vir a tombar ou uma árvore tocar o rotor principal e desestabilizar a aeronave. O tripulante operacional tinha que estar o tempo todo comigo no fone, porque da parte de trás da aeronave não tenho visão. A aeronave tinha de ficar próxima, mas não tão perto que pudesse encostar nas vítimas e, talvez, causar uma lesão. E ainda tinha a imprensa filmando aquele momento. Isso é adrenalina a mais. Havia o risco de a barragem que estava ao lado se romper. A gente não tinha informação precisa se estava estável.
A criança que queria ser cientista para fazer descobertas, para melhorar o mundo, sobrevive dentro de mim quando faço os resgates para tentar salvar as pessoas, tentar fazer a diferença na vida de alguém, enfim, atender o ser humano com qualidade.
Depois desse atendimento, que foi amplamente noticiado pela imprensa, e do rompimento da barragem, meu comandante mandou uma mensagem reconhecendo que ele estava errado. É bem gratificante e eu fico orgulhosa de ter provado para ele que realmente estava errado. Aviação é para mulher, sim. Na verdade, é para mulher qualquer profissão que ela se disponha a fazer, à qual ela se dedique com qualidade, desde que haja treinamento, envolvimento e amor. Tudo é possível.”