“Camila e Luiz, além de irmãos, eram extremamente amigos. Tinham o mundo deles. Passavam horas e horas, até quietos, um do lado do outro. Quando eles brigavam, e eu ia interferir, eles falavam: ‘Mãe, é problema nosso. A gente vai resolver'. Não tinha a mãe interferindo para um, não. Eles se resolviam entre eles. Eles mesmos brigavam, eles mesmo se entendiam. Tinham cumplicidade grande entre eles, durante a vida toda.
Eram bem diferentes: Camila era assim como eu, um pouco mais ansiosa. Luiz era mais tranquilo, mais focado, sabia o que queria. Mulher é mais difícil para se definir na vida. Luiz sabia bem o que queria. Mas ele me deu muito trabalho para estudar. As aulas começavam em fevereiro, quando era março, os professores já estavam me chamando. Era ótimo, mas passava o dia inteiro desenhando e estudar mesmo que é bom, nada. Era um menino que não gostava de estudar até o dia em que entrou na faculdade. Depois, foi superbem, encontrou-se na arquitetura. Foi sempre excelente aluno. Já nos primeiros trabalhos que fez na faculdade se tornou destaque da turma. Demoramos para perceber, mas ele já sabia que seria arquiteto.
A Camila estudava o necessário para passar. Se ela precisava de cinco, estudava para tirar cinco. Fez filosofia e, depois, direito. No direito ela se encontrou. É uma menina muito preocupada com o outro, com a Justiça, com as minorias, com as mulheres, enfim, todas essas questões que tornam o mundo desigual. Ela sempre dizia que enquanto tivessem vozes não ouvidas, ela seria assim. Tinha hora que pensava que ela exagerava, mas aprendi a admirar muito minha filha.
Ter sido mãe desses dois foi muito especial. Escolher ser mãe era meio que natural: casar, ser mãe, ter filhos. Não houve para mim decisão, ia acontecer. Era por eles que eu acordava. Era por eles que trabalhava e levava a minha vida. Eles precisavam que cuidasse deles, que eu os vestisse, os levasse para a escola e que lhes desse comida. Existia por trás disso um amor enorme deles por mim e de mim por eles.
Luiz foi para a Austrália e se deu muito bem. Trabalhava num dos melhores escritórios de arquitetura de lá. Galgou posições importantes. Chegou a diretor num país estranho. Foi muito bem acolhido. Estava namorando a Fernanda, que ficou grávida. Estávamos felicíssimos! Era o meu primeiro neto. Já tinha nome. Iria se chamar Lorenzo. Luiz transbordava de felicidade. Nunca vi meu filho tão completo. Camila estava superbem também.
Vieram da Austrália meu filho e a Fernanda, para passar férias no Brasil e ir a Inhotim estava no roteiro deles. Como Luiz é arquiteto, ele queria conhecer Inhotim, muito famoso no mundo todo. Ele tinha paixão por conhecer o museu e, para isso, tinha comprado uma supermáquina fotográfica.
No dia 25, estávamos em São Paulo. Era feriado. Estávamos passeando com afilhada, que mora fora do Brasil e estava passando férias em casa, quando chegou a notícia de que havia rompido uma barragem em Brumadinho. Nós sabíamos que eles estavam em Brumadinho, mas na hora não percebemos muito. Mandei uma mensagem de WhatsApp para a Camila, depois para o Luiz, e não tivemos resposta. 'Vamos para casa, vamos ver o que está acontecendo.’ Começamos a perceber que eles não respondiam. Os amigos começaram a procurar por eles. Imediatamente se formaram grupos para conversar, para ver quem tinha alguma notícia. Nem dormimos de sexta para sábado.
Até achávamos que eles tinham saído da pousada há tempo e só estavam sem comunicação. Mas, aí, o namorado da Camila nos mandou uma foto, que ela enviou às 11h50, da janela do quarto dela. Fizemos uma pesquisa e o guia de turismo confirmou que era a pousada atingida pela barragem.
Aí foi aquela coisa surreal. Fomos para Belo Horizonte, passamos no IML para fazer o cadastro. Fizemos o que nos orientaram. No domingo de manhã, viemos com Joel, pai da Fernanda, para cá (Brumadinho). Não sabíamos onde estavam. Tentamos rastrear os telefones, as operadoras demoraram para responder. Tudo colaborava para não serem achados, para não serem procurados. Foi muito difícil conseguir com que os nomes deles entrassem na lista de desaparecidos. Como você trata uma família que perdeu cinco pessoas com esse tipo de descaso? Minha nora estava grávida de cinco meses.
A vida para eles não tem valor. Essa coisa arrancada, de repente, está difícil de acreditar. Perguntaram para o engenheiro Makoto Namba (que atestou a segurança da barragem que se rompeu) se ele tivesse um filho, na região da barragem, o que diria depois que soube da fragilidade dos piezômetros? Disse que telefonaria para o filho e pediria para ele sair da área imediatamente. Falaria para a Vale tomar as medidas necessárias de emergência. Os filhos dele teriam escapado? Os meus não escaparam."