Sandra Quintão, 43 anos, proprietária do restaurante destruído, que reunia pessoas de Bento e turistas. Também viu a casa onde foi criada ser levada pela lama
Quando criança, era pé no chão. Bento era um lugar ainda sem asfalto. Lembro de subir no pé de jabuticaba, pegar manga nos terreiros dos vizinhos, brincar de pique. Batia na porta dos outros, à noite, para assustar as pessoas. Batia e escondia para as pessoas não verem a gente. Se vissem, seria muito xingo. Na escola (eu estudei até a quarta série), fizemos um levantamento (sobre a origem do nome do distrito): Bento Rodrigues era um bandeirante que passou lá, como contou para a gente Dona Dercira, uma pessoa mais velha do local. O bandeirante se chamava Antônio Bento Rodrigues.
Em 1990, fui para BH e fiquei seis anos trabalhando lá, em casa de família. Era babá. Enquanto isso, meu pai mexia com mercearia em Bento. Quando o comércio estava ruim, ele ia garimpar. BH estava ruim e meu pai adoeceu. ''Vou voltar para Bento, a minha casa.'' Eu voltei em 2000, coloquei fogão a lenha na mercearia e mudei o estilo. ''Colocar um fogão a lenha aqui?'', ele assustou. ''Vou mexer com comida''. Os primeiros pratos que fiz foram frango ao molho pardo e frango com caldinho de açafrão. Fazia uma gamela com mandioquinha frita, linguiça e torresmo. Depois, o frango com caldinho de açafrão, arroz e angu. Fui mexendo nos temperos e acabei acertando na coxinha. O restaurante ficou famoso.
O pessoal de Bento se reunia lá para jogar truco embaixo da mangueira. Tinha uma churrasqueira e a turma levava a carne. No meu restaurante, tinha área grande e bem arejada. O pessoal da comunidade e de fora gostava do ambiente e do tratamento. Como conhecia todo mundo, meu bar não tinha balcão. O freguês abria o freezer e escolhia a marca da cerveja que queria.
De cinco anos para cá fazia um torneio de truco. Era o quinto torneio. Dava os troféus e tinha uma taxa para comprar carne para churrasco, fazer tropeiro. No último torneio, juntou muita gente, 400 pessoas. Gente de Bento, Antônio Pereira, Santa Rita Durão. Neste ano, a festa de São Bento, em 31 de julho, também encheu. Foi muito boa. A festa de Nossa Senhora das Mercês em setembro também lotou. Parece que foi a despedida.
O 5 de novembro estava tranquilo. As cozinheiras chegaram às cinco horas. Enrolei três tabuleiros de coxinhas, fiz o pé de moleque. Descasquei o coco. À tarde, servi quase 40 refeições dos funcionários da Samarco. Quando deu quatro horas, o ônibus passou. Deixou encomenda no bar e entregou para minha irmã. Minha filha falou: ''Mamãe, o buzão não levou a gente''. ''Minha filha, hoje nós não vamos.'' Era costume ir à casa de uma irmã em Santa Rita Durão.
Então, vi a Paula buzinando na moto: ''A barragem estourou!''. Eu fiquei tremendo. Gritei minha irmã. ''Terezinha, a barragem estourou! Vamos embora.'' O pessoal do Bento tinha esse pesadelo há muito tempo. Lembro que, há 25 anos, era um dia de muita chuva, e, de madrugada, a polícia bateu lá em casa. A barragem ia estourar. Fomos para o alto. Depois veio o alerta, de que estava tranquilo e poderíamos voltar para casa.
Naquele dia (5 de novembro), vi uma nuvem de poeira. Abri o portão de casa e consegui tirar meu carro. Coloquei minha filha e vi uma senhora que tinha dificuldade de andar e precisava ser carregada. Encontrei um motorista e falei: ''Some com esse carro, leva essas pessoas embora. Eu vou esperar minha irmã.'' Ela estava no quintal para chamar o meu irmão. Quando ela viu a lama chegar, correu para onde eu estava. Foi questão de ela correr e entrar na caminhonete do meu irmão, porque ela tinha conseguido falar com ele. Tentou ir para Santa Rita, mas a lama já tinha chegado. A solução foi subir a Igreja das Mercês, lugar mais alto. A lama tomava as casas. Quando chegamos no alto, meu irmão disse: ''Sandra, olha a nossa casa boiando.''
A mata que a gente percorreu não tinha caminho. Colocamos tábuas e passamos. Eu caía, escorregava. Eu chorava e carregava minha filha, Ana Amélia. Antes de escurecer, eu saí na estrada que dava acesso à Santa Rita. Saí gritando: ''Crueldade, brutalidade me arrancarem da minha casa desse jeito''. Cheguei com a Ana em Santa Rita, na casa da minha irmã, e ela nos abraçou.