Construí minha casa, fiz 10 cômodos, fora a varanda. Toda limpinha. Com uma parede de cada cor. Tinha cinco quartos de um lado. Do outro, tinha duas cozinhas, três com a que tinha fogão a lenha. Minha casa chamava Casa Nossa Senhora Aparecida. Sabe por quê? Sou muito devota de Nossa Senhora Aparecida. Cada quarto tinha uma mesinha ou um rack com Nossa Senhora Aparecida e um vaso de flor. O quarto da sala tinha duas camas de solteiro, um guarda-roupa de sucupira e um rack. Cada cama de solteiro tinha dois colchões. Chamava quarto dos padres porque os seminaristas, todos os que trabalharam em Paracatu, passaram lá. Iam tomar café, comer qualquer coisa, mas não deixavam de passar. O religioso José Henrique Coelho morou com a gente dois anos. Ele vinha para Mariana dia de sábado, estudava no seminário e ia para Paracatu celebrar e dormia lá em casa.
Nasci no dia 4 de maio de 1937. Nasci e fui criada nesse tal lugar onde a barragem estragou. Foi meu pai que me criou. Não tive mãe. Quando nasci, se passaram 14 dias, ela morreu. Na minha casa, eu mexia com horta e o jardim. A horta era maravilhosa. Todo mundo que passava na rua via o jardim na frente da minha casa. Tinha uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida no meio da varanda com dois vasos de flor. Quem passava na rua avistava. Eu levantava todo dia de manhã, varria o terreiro e molhava as flores.
De um lado e do outro, você via rosas: vermelhas, brancas, rosas. Tudo quanto era flor tinha. Um vaso de samambaia chorona, com cada galho com mais de um metro e meio. No outro lado, vaso de flor, que dava cachinho branco, a coisa mais linda do mundo. Tudo foi embora. A água destruiu.
No dia cinco de novembro, minhas filhas fizeram compra. Quatro horas e quinze “certinzinho”, o ônibus chegou, descarregamos as compras que fizemos. Em Paracatu, quando a gente faz compra grande, os amigos ajudam a levar até a casa da pessoa. Quando chegamos com a compra, passou uns 20 minutos e o telefone na casa da minha filha tocou. Era Vanessa, a irmã da minha nora Luciene. “Oh Luciene, fica atenta aí. Avisa o pessoal que vem uma enchente.” “Ô dona Leontina, Vanessa tá me avisando que vem uma enchente. Avisa o povo de Paracatu para sair.” Minha filha falou: “Ô mãe, deixa de ser boba, não tem enchente, tem mais de 20 dias que não chove. Que enchente é essa sem chuva?” Cinco minutos depois que o telefone tocou, nós vimos apontar aquele avião (helicóptero com os bombeiros).
O avião baixou na beira do rio. Fiquei feito boba, corri no terreiro e falei com minhas meninas: “Ô gente, vai cair um avião aqui.” A gente na roça nunca vê avião. Eu abanei as mãos. “Ô gente, vai cair, vai morrer.” Quando o avião pousou eu falei: “Arlinda, (filha de Leontina) vamos lá para ver que é acidente, vai morrer muita gente.” Quando nós saímos, no meio do caminho, topamos com os bombeiros: “Cinco minutos para vocês saírem. Já vem uma tragédia.” Eu parei. Não conseguia nem voltar para casa nem sair. Um policial, o Ronaldinho, me pegou pelo braço e me pôs no carro.
No alto, ajuntei com minha sobrinha Maria das Dores, a turma toda e rezamos um terço. Perdi tudo na vida, a não ser minha família. Eu perdi, mas a fé em Deus eu não perdi. Se eu voltasse para buscar alguma coisa seria minha Nossa Senhora Aparecida. As santinhas todas que eu tinha em casa eu troquei em Aparecida (SP). Estava com as passagens pagas para ir para lá. Não vamos mais. Se Deus nos der vida e saúde, no próximo ano, vou lá agradecer pelo que ela fez para nós.