Na adolescência, a gente tinha essa coisa de sair em grupinho de meninas. Era 16 de julho de 1995, festa de Mariana. Jaqueline falou que viu um moreno assim, assim, assado. Os jovens se concentravam no Jardim (como moradores de Mariana se referem à Praça Gomes Freire, a principal da cidade). Era o point. Aquela festa da cidade ia durar quatro dias: quinta, sexta, sábado e domingo. Era o último dia da festa. Minha irmã falou: “Olha aquele moreno lá, aquele bonitinho”. Ele estava mesmo: camisa gola polo, um blazer, calça jeans.
Dinei estava com um colega, amigo em comum de uma colega minha. O grupo dele se encontrou com o meu, quando Jaqueline me cutucou. Era o mesmo moreno que a gente tinha visto na quinta-feira. A colega dele veio até nós e disse: “Mírian, aquele meu colega quer te conhecer”. Conhecer? “Ele perguntou se você pode vir amanhã no Jardim às oito horas.” Falei com minha mãe: “Tem um rapaz querendo me conhecer lá no Jardim”. Ela falou: “Então, vai”. Fui para o Jardim. Cinco minutos depois, ele chegou e nos encontramos. Demos uma voltinha assim. Foi meia volta no Jardim e já demos o primeiro beijo (quatro anos depois do primeiro encontro, Mírian casou-se com Dinei).
O 5 de novembro de 2015 era um dia normal, como todos os outros. Eu tinha voltado de férias tinha dois dias. Acordei e separei minhas coisas porque a gente tomava café lá na escola em Bento Rodrigues. Eu, a diretora e a inspetora sempre tomávamos café juntas depois do horário dos meninos. Levei pão integral e iogurte. Nesse dia comum, uma professora de manhã não foi trabalhar. A gente ficou naquele corre-corre de dispensar menino. Iria ter um chá de bebê, um chá de fraldas de uma aluna. A gente sempre lanchava na sala dos professores, mas, nesse dia, lanchamos no pátio, com as meninas, estávamos conversando e tal.
Escutei um barulho. Era como se fosse de um motor ligado. Veio na minha mente a turbina de avião: “Vul,vul, vul”. Achei que era um caminhão estacionado no lado de fora da escola. Levantei para ir para a secretaria e Eliene, a diretora, falou: “Eu vou com você entregar uma encomenda no ônibus”. Eram quatro horas e três minutos exatamente (porque peguei o celular para ver), saímos nós três: eu para a secretaria e as duas em direção à porta. A secretaria era na frente da escola, e a minha mesa, direcionada para porta. Lelei, marido da diretora, quando chega na porta da escola, já sei que ele quer falar com ela. “Eliene, é Lelei”, chamo.
Quando eu cheguei à porta, ele bateu. Ele não bate. Estava no carro e desceu no trajeto de pouca distância. Bateu com muita força no vidro. Imaginei que falaria uma coisa ruim. É um pensamento de um segundo. Eliene tem filho, a mãe já é de idade. Fui atrás dela, nem entrei na secretaria. Se ele falar alguma coisa, que alguém tá doente, se machucou, ela vai desmaiar, cair. Fui no intuito de amparar. Quando cheguei à porta, ele disse: “A barragem estourou!”. Eliene falava: “Cadê Natan?”– o filho dela. Eu não lembro, mas diz ela que, na hora que Lelei disse que a barragem estourou, eu peguei no braço dela e disse: “Você vai no sexto e sétimo, que eu vou no oitavo e nono”. A inspetora ouviu, mas ficou sem ação. Gritei com ela: “Junta as coisas!”. Eu com essa minha característica, não sei se defeito ou qualidade: organizada demais.
Atravessei por uma área verde e Eliene atravessou também. Ela foi para as duas últimas e eu, para as duas primeiras. Quando eu cheguei à porta da sala do sexto ano, o professor estava debruçado e os meninos tranquilinhos. Cheguei e falei: “Corre que a barragem estourou!”. Os meninos começaram a juntar as coisas. “Não junta não! Corre! A barragem estourou!”
Aí eles entenderam. Largaram tudo e correram. Quando eu cheguei na sala do sétimo, que era só virar o corpo, olhei e estava a mesma coisa. A professora debruçada na mesa e os alunos todos concentrados. Meu pensamento antes era: “Eles escutaram e estão vindo”. Quando olhei para a sala e vi todo mundo quetinho, disse: “Corre, gente! A barragem estourou!”. Não ficou nenhum menino na escola. Fui a última a sair.
Fomos embora. Tinha um caminho mais fácil, mas, no desespero, subimos por uma trilha. A gente subia enquanto ouvia o barulho da água. Era um barulho que incomodava, além de ouvir o som de motor, você ouvia as árvores se quebrando, aquele barulho de tronco batendo, igual a quando você está no quintal de roça rachando lenha. O povo foi subindo: mãe procurando filho, filho procurando mãe. Aquela gritaria. O pessoal foi caminhando para o pico, que era mais alto, até o barulho da água sumir. Quando a gente olhou para trás, na parte mais baixa do Bento, você via onda. A velocidade da água era muito forte.
Às seis e meia, estava começando a escurecer, chegaram helicópteros. O pessoal falou que não podia tirar a gente da parte mais alta. Só tirariam os feridos, porque estava anoitecendo. Teríamos que passar a noite ali. Só retornariam pela manhã. Durante a noite, descemos um pouco, o barulho diminuiu, mas não parou. A gente perguntava: “Que barulho é esse?” Os bombeiros chegaram e disseram que não teriam como nos tirar naquele momento. A notícia em Mariana era que tinha morrido todo mundo. Eu pensava que tinha que falar lá em casa. “Eu não estou morta. Estou viva.” Para meu marido, estávamos dentro da escola, embaixo da lama. Às seis da manhã, conseguiram abrir caminho. Então, saímos de camburão para Santa Rita. Lá, na sexta de manhã, colocaram a gente no primeiro ônibus.
Encontrei meu filho no ponto de Mariana. Não tem sensação mais gostosa. Foi o melhor dia da minha vida. Fui para a lanchonete onde estavam minhas cunhadas. Tio, avó, irmãos do meu marido, todos os parentes estavam ali. Dez minutos depois, meu marido chegou. De novo me veio a lembrança daquele domingo de 1995 no Jardim, quando Dinei abriu o braço e eu pensei: “É para lá que eu tenho que ir!” Abracei e brinquei: “Não foi dessa vez.”