Interrogações surgiram nas cabeças de quem passava pela Afonso Pena, no Centro de Belo Horizonte, na tarde daquela quinta-feira de maio de 1956. Um enigmático e jovem senhor, de longos cabelos e barba por fazer, carregava uma pasta com uma bandeirinha verde. Falava um idioma estranho, andava de um jeito diferente e vestia roupas pouco comuns. Se autodenominava E. Nigmo – e atraiu instantaneamente a curiosidade da reportagem do Estado de Minas, que o seguiu até vê-lo entrar em um edifício e tomar o elevador. 

 

 

“Não era nenhum ermitão, nem missionário. E se alguém mais fizesse outros prognósticos, na certa erraria em cheio, pois dificilmente se poderia adivinhar que se tratava de um engenheiro, de nacionalidade alemã, que veio aqui cumprindo mais uma etapa de uma turnê que realizada pelo continente, em missão de caráter cultural”, publicou o jornal na edição de 4 de maio de 1956. Na verdade, aquela curiosa figura se tratava do engenheiro Hans Philipp Gunkel, alemão nascido na cidade de Fulda e morto em 2008, no mesmo local.

 



 

Era falante do esperanto e tinha como missão divulgar a língua universal desenvolvida pelo médico Ludwik Zamenhof, que lançou a primeira publicação com as bases do idioma em 1887. Havia alguns anos, E. Nigmo tinha vendido todos os bens e partido de sua residência alemã para uma viagem pela Europa, dentro de um fusquinha estilizado com dois desenhos: em uma das portas laterais, um globo, acompanhado da palavra “Esperanto”; no capô, um equino estilizado com a o dizer ‘Ladazeno’ – burro de lata, no idioma universal.

 

Em Belgrado, E.Nigmo tinha, a bordo do fusquinha, atropelado uma tartaruga – que sobreviveu

Biblioteca Ary Zamora/Associação Gaúcha de Esperanto

 

O entusiasta do idioma passou pela França, Holanda e Áustria, até chegar na Iugoslávia. Levava consigo um caderno azul, que na verdade era um “passaporte universal”. Em Belgrado, hoje capital da Sérvia, E. Nigmo também virou notícia, na edição de 21 de agosto de 1954 do jornal “Glas Gorenjske” – que traduzimos por meio da inteligência artificial: “As únicas identificações desse viajante mundial são as impressões digitais da mão esquerda e direita, uma fotografia de todos os objetos que carrega consigo e o compromisso de que seu único lar será um pequeno carro esportivo”. O documento também informava a profissão dele: “Aquele que busca a paz mundial”.

 

 

Segundo o jornal iugoslavo, publicado em esloveno, o “missionário esperantista” esperava passar por um total de 36 países dirigindo seu fusca e levando aquele documento, digamos, extra-oficial. Além disso, tinha interesses que iam além do idioma. “Além de propagar o esperanto, ele aproveita esta viagem para coletar impressões digitais; afirma que as linhas nas palmas das mãos, além de revelar o caráter psicológico de uma pessoa, também indicam o clima e o ambiente geográfico”, contava a publicação.

 

Reportagem sobre a passagem de E. Nigmo por BH apareceu na edição de 4 de maio de 1956 do Estado de Minas

Arquivo/EM

 

A princípio viajando sozinho, o alemão acabou se dobrando a levar consigo uma companhia pouco usual, em um episódio descrito pelo “Gorenjske”. Pouco depois de Zagreb, dirigindo numa dita velocidade de 130 km/h – pouco crível para o modelo do automóvel –, E. Nigmo atropelou uma jovem tartaruga. “Parou o carro e a levou consigo como única companheira em sua longa jornada”, finalizava o diário.

 

Posteriormente, no entanto, o tal passaporte não convenceu as autoridades da Inglaterra. No país, E. Nigmo teve o fusquinha apreendido e ficou 95 dias preso, segundo a reportagem do EM. Ao sair, sem o veículo, resolveu transformar a viagem em protesto e, para isso, deixou crescer os cabelos loiros e a barba. Passou pela África até chegar ao Brasil. Em Belo Horizonte, foi até o Edifício Guimarães, que abrigava a sede da Sociedade Mineira de Esperanto, onde se encontrou com os falantes belo-horizontinos da língua universal. “Foi um bate-papo agradável, do qual o repórter, presente à reunião, não pescou patavina”, escreveu o EM.

 

 

O idioma universal em BH

A passagem de E. Nigmo por Belo Horizonte remonta à trajetória do esperanto na cidade, mantida por um coeso grupo de apaixonados pela língua. Curiosamente, BH possui, num dos seus locais mais tradicionais, um monumento ao criador da língua. É a Praça Zamenhof, na Avenida Assis Chateubriant, no Floresta. Erguida, em 17 de dezembro de 1950, a obra do escultor mineiro Samuel Martins Ribeiro foi o primeiro busto do médico polonês a surgir no mundo, segundo os membros do Sociedade Esperantista Mineira (SEM), a entidade que representa os falantes do idioma.

 

 

A instalação da estátua foi desenvolvida por ocasião do 12º Congresso Brasileiro de Esperanto, realizado em Belo Horizonte em 1949. O Estado de Minas também esteve presente na inauguração do busto de bronze no Bairro Floresta, registrando o momento com uma fotografia publicada na edição de 18 de dezembro de 1950. Hoje, a comunidade de falantes se reúne anualmente na Praça Zamenhof para comemorar duas datas especiais: o aniversário do criador, em 15 de dezembro; e o do lançamento da primeira publicação no idioma, em 26 de julho.

 

Busto de Zamenhof foi inaugurado em 1950, na praça que hoje leva o nome do criador do esperanto, no Bairro Floresta, em BH.

Arquivo EM. Brasil.

 

Atualmente, a SEM, com sede na Rua Guajajaras, no Centro da capital, conta com cerca de 30 integrantes. Contudo, de acordo com o presidente da entidade, Marco Tulio Flores, o número de falantes de esperanto em BH pode chegar a 500 pessoas, principalmente pela difusão dos aplicativos de aprendizado de idiomas, que contam com cursos para a língua de Zamenhof. "As regras são muito simples. São poucas conjugações e não há exceções. Isso facilita o aprendizado", diz Flores, que desenvolveu um dicionário esperanto-português e um curso com 12 lições de 1 hora, disponível gratuitamente na internet.

 

 

Como conta o esperantista, Zamenhof, por viver em uma região então pertencente ao Império Russo, hoje parte da Polônia, em que diversos idiomas, como russo, polonês, o alemão e o iídiche eram falados, buscou desenvolver uma língua universal como tentativa de reduzir as barreiras linguísticas entre as pessoas.

 

 

“A 'Ethnologue', uma publicação especializada em idiomas, já estimou entre 2 milhões e 10 milhões o número de falantes de esperanto em todo o mundo. Mas é uma conta muito difícil de fazer, porque é difícil definir o que é ‘falar’ esperanto. Quantos brasileiros falam francês, por exemplo? Não existe essa estatística, ninguém sai perguntando por aí quais os idiomas uma pessoa pode falar e, mesmo que isso fosse feito, não há dados confiáveis para esse número”, explica o presidente da SEM.

 

 

Vicente Sales, morador de Belo Horizonte, foi um dos que viu o Esperanto abriu portas em outros lugares do mundo. O mineiro de 66 anos resolveu aprender o idioma para se comunicar quando, em 2013, foi a Berlim participar da primeira maratona internacional que disputou.

 

 

“Estudei a língua por seis meses, porque vi que seria difícil melhorar o meu inglês. Quando cheguei, encontrei esperantistas e consegui me comunicar tranquilamente”, conta ele, que também é membro da SEM e, em agosto deste ano, esteve na Tanzânia para o Congresso Mundial de Esperanto. O encontro de Sales com outros falantes do idioma aconteceu no Japão, informalmente. Por meio de um aplicativo que reúne outros esperantistas em localizações próximas, Sales conheceu outros japoneses, exercendo exatamente o que buscava Zamenhof: romper as fronteiras.

 

 

Recentemente, a pedido da reportagem, Sales ajudou a desvendar o enigma de Hans Philipp Gunkel. O diretor da SEM entrou em contato com a comunidade esperantista de outras cidades, até que Miguel R. Bento, 1º secretário da Associação Gaúcha de Esperanto, responsável pela Biblioteca Ary Zamora, encontrou um cartão postal enviado de Fortaleza por E.Nigmo, com uma foto do esperantista ao lado do saudoso fusquinha. O alemão contava de sua passagem por Fortaleza e informava que seguiria para o Japão, antes de finalizar, de forma enigmática: “Char la tempo urghas”. Pois o tempo urge.

 

 

Arquivo EM

O Arquivo EM conta, a partir de buscas na Gerência de Documentação e Informação (Gedoc) dos Diários Associados em Minas Gerais, reportagens quase esquecidas sobre Minas Gerais e o país.

 

O Sabia Não, Uai!

Se você gostou de mais esta história do Arquivo EM, aproveite para conhecer o Sabia Não, Uai!. A série mostra de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro, e por vídeos digitalizados da TV Itacolomi.

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