Quando as urnas foram abertas na manhã deste domingo (6/10), 8,5 milhões de mulheres mineiras estarão aptas para votar no primeiro turno das eleições municipais de 2024. De acordo com dados do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) de setembro, o número corresponde a 52% do eleitorado do estado. Em Belo Horizonte, a diferença é ainda maior. São 1,08 milhões de eleitoras, 54% dos votantes da capital. Essas estatísticas, porém, remetem a uma história de lutas, ainda em prática, para que as mulheres conquistassem o direito à representatividade política no país.
 
A batalha pelo sufrágio feminino em Minas e na capital foi assunto das páginas do Estado de Minas nos anos 1920 e 1930. Neste domingo, o Arquivo EM relembra a história de Maria Ernestina Carneiro Santiago Manso Pereira, mais conhecida como Mietta Santiago – a primeira mulher a conquistar o direito ao voto em Belo Horizonte, ainda em 1928. As pesquisas têm como base o acervo de 96 anos de páginas impressas, na Gerência de Documentação (Gedoc), do Estado de Minas e do Diário da Tarde, vespertino dos Diários Associados que circulou até 2007.
 


 
Num artigo de 15 de setembro de 1928, o EM trazia, em sua primeira página, o título: “O voto feminino – Foi alistada a primeira eleitora de Belo Horizonte”. O artigo reproduzia a decisão do juiz Gentil Nelaton de Moura Rangel, da primeira vara da capital. O magistrado havia deferido, dois dias antes, o pedido de Mietta Santiago, que se baseou nos requisitos legais – como ser brasileira, maior de 21 anos, residente na capital por mais de quatro meses e “com renda suficiente”, além de ter provado saber ler e escrever – determinação válida desde um decreto de 1881, conhecido com Lei Saraiva, ainda do Brasil Império, que instituiu o título de eleitor. “Não pode servir de obstáculo ao seu alistamento o fato de ser do sexo feminino”, escreveu o juiz, acrescentando que o artigo 70 da Constituição de 1891 reconhecia “o direito de votar a todos os cidadãos brasileiros, menos os mendigos, analfabetos, praças de pré [militares de patentes inferiores] e religiosos sujeitos a voto de obediência”.
 
 
E finalizava: “Considerando que a requerente provou ter todos os requisitos da lei para que lhe seja reconhecido por sentença o direito de votar e ser votada nas eleições políticas, defiro o seu requerimento e determino que seja o seu nome incluído na lista dos eleitores desta capital”.
 
Nascida em Varginha em 1903 e residente em BH desde os 11 anos, Mietta Santiago foi escritora, poeta e advogada que batalhou pelo direito ao voto das mulheres. De acordo com um artigo disponível no site da UFMG, baseado no livro “Mulheres no poder”, de Schuma Shumaher e Antonia Cerva, Mietta havia impetrado, como advogada, um mandado de segurança para que pudesse votar em si mesma na eleição para deputada federal. Não conseguiu se eleger, o que, segundo as autoras, “seria uma ousadia para a época”. Viveu até 1995, quando veio a falecer, no Rio de Janeiro.
 

Decisão que concedeu a Mietta Santiago o direito do voto foi reproduzida no Estado de Minas de 15 de setembro de 1928

Arquivo/EM
 
Em 1927, o movimento pelo voto feminino já havia tomado forma no Rio Grande do Norte. Uma lei daquele ano, aprovada no estado nordestino, possibilitou que as mulheres fossem incluídas no rol de eleitores. Isso possibilitou, também em 1928, que Luiza Alzira Soriano Teixeira se candidatasse para a prefeitura de Lages (RN), se tornando a primeira mulher eleita para um cargo político no país. Mas, como as legislações para o sufrágio feminino se baseavam em interpretações do artigo 70 da Constituição de 1891, que citava o direito do voto para “cidadãos”  – sem especificar o gênero –, dependiam de sentenças pontuais e, desta forma, frágeis, como explica Mariana de Moraes Silveira, professora do Departamento de História da UFMG. “Como a lei era vaga, os direitos vinham sendo garantidos por decisões judiciais. Assim, eram direitos mais precários e casuísticos, dependendo de que o juiz que estava lá alistasse a mulher ou não”, pontua a historiadora. A própria Justiça do Rio Grande do Norte, algum tempo depois, anularia os votos femininos de 1928. 
 
 

Um homem no Partido Feminista

Foi após a Revolução de 1930 e da reforma eleitoral que viria a criar o Código Eleitoral de 1932, no primeiro governo de Vargas, que o direito ao sufrágio feminino ficaria expressamente definido na legislação brasileira. Em 9 de janeiro de 1932, um sábado, o EM afirmava, na manchete: “A lei eleitoral brasileira, em elaboração, torna extensivo o direito do voto às praças de 'pret', aos estudantes maiores de dezoito anos e às mulheres”. Depois, esse direito seria ratificado definitivamente na Constituição de 1934.
 

Manchete do EM de 9 de janeiro de 1932 antecipava as novidades do Código Eleitoral de Vargas

Arquivo/EM
 
Alguns meses depois, em 18 de novembro, a edição do Diário da Tarde trazia uma reportagem sobre a abertura do primeiro ‘bureau’ eleitoral feminino de Belo Horizonte, inaugurado em 13 de novembro daquele ano. Na matéria, a presidente da entidade, a senhora Guiomar Calazans, ressaltava que o objetivo do bureau era facilitar o alistamento das mulheres da capital. De acordo com a lei, havia a obrigatoriedade, chamada ‘ex-ofício’, de servidores públicos e profissionais liberais de se registrarem para o voto. Esse número, segundo Guiomar, representava 500 eleitoras de BH à época. Já com voluntárias, poderia chegar a 900. O escritório ficava no mesmo edifício do Partido do Centro, de Olegário Maciel, então presidente de Minas Gerais – cargo análogo ao de governador. O político mineiro também seria o primeiro brasileiro a receber um título de eleitor da Nova República, publicado no EM em 5 de janeiro 1933. Mas morreria em setembro do mesmo ano.
 
 
Em 3 de dezembro de 1932, o DT visitou novamente a sede do bureau, que também abrigava o Partido Feminista Mineiro. Ao chegar, o repórter descreveu ter encontrado as diretoras da siga “de pé, em atitudes dominadoras, estampando uma impressão de varonilidade, articulando gestos exatos e geométricos”. Ele, porém, conversaria somente com o secretário-geral da sigla, Pedro Lima, que estava “sentado, com ares displicentes”. No fim da reportagem daquele dia, o jornalista questionou, já que não conseguia falar com as outras representantes femininas presentes: “por que é o senhor – e não uma mulher – o diretor-geral do Partido Feminista?”. Em resposta, Lima diria: “para auxiliar na direção do nosso partido a doutora Guiomar Calazans, que tem sido incansável na organização desta agremiação feminista. Consolidado este, como espero, retirar-me-ei dele imediatamente”.
 

Primeira pessoa a receber um título de eleitor da Nova República foi o então presidente de Minas Gerais, Olegário Maciel, em 1933. Ele morreria ainda naquele ano

Arquivo/EM
 
Essa anedota simboliza, para a historiadora Mariana de Moraes Silveira, uma ideia de espaço público, que vem desde a Revolução Francesa, que o via como construído unicamente pelos homens. Segundo a professora da UFMG, resquícios dessa construção se refletem até hoje na política. “As mulheres são mais interrompidas, questionadas e submetidas a violências, isso tem a ver com a construção tortuosa da vida política para elas”, explica Mariana. Essas dificuldades são traduzidas também em números. Apesar do eleitorado feminino ser majoritário, o mesmo não acontece com as candidaturas. Segundo o TRE-MG, o Estado tem 24.671 mulheres (34%) tentando se eleger nestas eleições em prefeituras, vice-prefeituras e nas Câmaras Municipais, contra 48.754 homens (66%). As estatísticas ficam ainda mais díspares quando são consideradas apenas as candidaturas para prefeito: 2.062 são de homens (88%) e 273 (12%), de mulheres.
 
Segundo Mariana de Moraes Silveira, são essenciais as ações afirmativas como a Lei 9.504/1997, que estabeleceu que os partidos preencham 30% das candidaturas para mulheres. Porém, as garantias ainda carecem de atenção. Dados do Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP) mostram que mais de 700 municípios do país descumpriram, nestas eleições, esse percentual. Como lembra a historiadora, direitos como o voto das mulheres no país não foram fruto de um progresso “natural”. “A história do sufrágio feminino não é uma história sem batalhas. Direitos que são conquistado vêm de muita luta e eles estão sendo questionados a todo momento. As conquistas dessa luta não são garantidas e precisam ser reafirmadas”, conclui a historiadora da UFMG. 
 
 

Arquivo EM

O Arquivo EM traz histórias que estamparam as capas dos jornais mineiros no século passado. As pesquisas têm como base o acervo de 96 anos de páginas impressas da Gerência de Documentação (Gedoc), em Belo Horizonte. Confira aqui todas as matérias. Lembra de alguma história da cidade ou sabe mais sobre o caso de hoje? Escreva para nós: arquivoestadodeminas@gmail.com 
 
 

O Sabia Não, Uai!

Se você gostou de mais esta história do Arquivo EM, aproveite para conhecer o Sabia Não, Uai!. A série mostra de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro, e por vídeos digitalizados da TV Itacolomi.

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