Edson, de 13 anos, à direita da mesa em que comemorou a sorte, em banquete regato a sardinhas e cerveja -  (crédito: Arquivo/EM)

Edson, de 13 anos, à direita da mesa em que comemorou a sorte, em banquete regato a sardinhas e cerveja

crédito: Arquivo/EM

O jovem Edson Bonifácio Ferreira, de 13 anos, andava desolado pelo Centro de Belo Horizonte. Tentava, sem sucesso, vender as frações restantes de um bilhete de número 03030, da Loteria Federal. O garoto temia ter que pagar o valor dos oito “gasparinos” – as frações do jogo – encalhados ao patrão, o cambista Luiz Ferreira da Glória. Para piorar, no cruzamento das ruas Espírito Santo com a Carijós, Edson foi pego no pulo.

 

Um agente da Delegacia de Menores o flagrou tentando passar a mercadoria para um possível cliente e apreendeu as cédulas restantes. O cambista-mirim fugiu, correndo. Mal sabia ele que, horas depois, o azar se transformaria na fortuna de 1,6 milhão de cruzeiros. Na mesa do delegado Cata Preta, estava o bilhete premiado: aquele mesmo, o de número 03030.

 

O caso do golpe de sorte que mudou a vida do jovem Edson Bonifácio em 25 de fevereiro de 1953 é o tema do Arquivo EM de hoje, o último da série que começou em abril, com matérias desenvolvidas a partir das pesquisas do acervo de 96 anos de páginas impressas da Gerência de Documentação (Gedoc) do Estado de Minas.

 

Para nos despedir dos leitores que nos acompanharam nessas 14 reportagens, contamos desta vez episódio que há quase 72 anos virou uma batalha entre dois cambistas, um mirim e um “sênior”, pela posse do bilhete milionário na capital mineira. O imbróglio se estendeu por 15 dias, com ampla cobertura pelo EM.

 

 

Festa no boteco

A notícia de que o menino de 13 anos era o mais novo milionário de Belo Horizonte estampou o Estado de Minas no dia seguinte, 26 de fevereiro de 1953. “História sensacional de um bilhete de loteria – apreendido pela polícia em mãos de um menor, estava premiado uma hora depois”, informava a manchete, impressa abaixo de duas fotos com a comemoração do pequeno Edson em um bar próximo do barracão onde vivia, na Parada da Abadia, hoje próximo ao Bairro Esplanada, na Região Leste de Belo Horizonte.

 

As duas imagens mostravam o jovem cambista degustando um “banquete” com “sardinha, pedaços de cebola, rodelas de limão e garrafas de cerveja, em profusão”.

 

Menino Edson comemorou a sorte grande em 'banquete' com muita sardinha e cerveja, ao lado do pai, Rouxinol

Menino Edson comemorou a sorte grande em 'banquete' com muita sardinha e cerveja, ao lado do pai, Rouxinol

Arquivo/EM

 

“Desde ontem, quando circulou a notícia de que o humilde vendedor de bilhetes havia sido premiado com a sorte grande, os vizinhos de Edson Bonifácio Ferreira começaram a cercar a família do garoto de atenções especiais. Todos procuravam vê-lo e – como não podia deixar de ser – todos ofereciam seus serviços. Coisas que antes não se lembravam de fazer, nem de leve, mas que agora fazem alegres, pois querem assegurar a amizade do novo milionário”, dizia o EM.

 

A reportagem foi encontrar o garoto no “banquete da vitória”, acompanhado de um dos irmãos e do pai dele, Rouxinol Ferreira Lima, o “Pierrot”, que mandava o proprietário servir uma “cachacinha” aos amigos que chegavam à comemoração.

 

Entrevistado pelo jornal, o jovem cambista, que até então vendia os bilhetes da loteria para ajudar a numerosa família, disse que iria usar o dinheiro para estudar e auxiliar os parentes. “Quando o repórter saiu, os comensais do pequeno milionário ainda continuavam o banquete, mandando que o proprietário do bar descesse garrafas de cerveja, latas de sardinha e picasse mais cebola.”

 

 

A disputa

Depois de apreendidas, as oito frações do bilhete 03030 foram entregues ao delegado de Menores, o senhor Cata Preta, que mandou devolver os gasparinos ao jovem cambista, prevendo que, se isso não acontecesse, Edson teria que pagar do próprio bolso o valor da cédula ao vendedor que os repassara ao menino. Foi quando percebeu que os números tinham sido sorteados com o prêmio de 2 milhões de cruzeiros, com o valor de 1,6 milhão ficando para os oito boletos restantes – dois haviam sido vendidos pelo garoto no dia do sorteio. “O menor que procurou vendê-las a todo custo era o seu legítimo proprietário. Estava portanto rico”, sacramentou o EM.

 

Luiz Ferreira da Glória não perdeu tempo. O homem que “contratava” Edson para vender loterias nas ruas apareceu de pronto na delegacia, reclamando o prêmio – assim como o pai do menino, Rouxinol Ferreira. Todos prestaram depoimento. Aquela edição do Estado de Minas também trazia a opinião do advogado Machado Coelho, que afirmava que o prêmio ficaria com o portador do título. Ou seja, com o rapaz de 13 anos que o havia adquirido para vender.

 

Batalha entre cambista-mirim e seu "patrão" sobre a posse do bilhete 03030 se estendeu por semanas

Batalha entre cambista-mirim e seu "patrão" sobre a posse do bilhete 03030 se estendeu por semanas

Arquivo/EM

 

Mas o cambista não se deu por derrotado. No dia seguinte, o curador de Menores da capital mineira enviou um requerimento à Justiça pedindo um mandado de busca para o bilhete, que ainda estava em posse da polícia, para que fosse entregue ao Banco do Brasil e, assim, os 1,6 milhões de cruzeiros fossem depositados em nome do garoto Edson. O pedido foi deferido, mas ficou retido no banco. Luiz da Glória, chamado de “o homem mau” pelo jornal, também reclamava judicialmente o prêmio, por ter, ele mesmo, adquirido com o próprio dinheiro o bilhete na lotérica Campeão da Avenida. O estabelecimento, por sinal, funcionou na Praça Sete por quase 90 anos, até deixar o local em 2011, como noticiado também pelo Estado de Minas. Hoje, a agência fica na Região do Barreiro.

 

“Luta o cambista pela posse do bilhete premiado”, informava o jornal em 28 de fevereiro de 1953, um sábado. A reportagem retratava os esforços do “patrão” para reaver o prêmio milionário, que ele argumentava ser de direito seu, e lembrava que as opiniões sobre o assunto eram majoritariamente desfavoráveis a Luiz da Glória.

 

 

“O complexo dos negócios relacionados com a distribuição e venda dos bilhetes de loteria é desenvolvido através de diversas e confusas transações”, explicava o jornal. “Agentes, distribuidores, casas vendedoras, revendedores, donos de ‘pontos’, cambistas, auxiliares de cambistas, recebedores de ‘encalhes’, desenvolveram suas atividades nos diferentes caminhos percorridos pelos bilhetes lotéricos, obedecendo a uma lei rígida e inflexível: os usos e costumes consagrados dessa modalidade de comércio. E é exatamente em torno dessas normas consuetudinárias que vem girando as discussões dos entendidos”, complementava, sobre as dificuldades em torno da questão.

 

Ainda segundo a reportagem, Luiz da Glória estava representado pelo advogado Gilberto Dolabela. Segundo ele, um acordo, “com contrato existe com a agência de que recebe bilhetes”, obrigava a devolução dos gasparinos até as 10h30 do dia seguinte da retirada, se eles não fossem vendidos. “Sublinha, ainda, que tendo pago o preço na casa lotérica, é o sr. Luiz Glória o legítimo portador e possuidor do bilhete em apreço”.

 

Em 1º de março, o EM trazia ao conhecimento o fato de que a história do prêmio de loteria não só atraíra jornalistas de todo o Brasil para a capital mineira, como também que movimentava a Justiça local, com duas ações. A primeira, a de Luiz Glória, reclamando o valor total com seu. A outra, do pai de Edson, pedindo a manutenção de posse ao cambista-mirim.

 

 

A solução

Já havia se passado uma semana sem que ninguém ainda tinha visto a cor dos milhões prometidos pelo bilhete 03030. A batalha estava emperrada na Justiça. Foi quando, numa entrevista ao Estado de Minas, o advogado que representava a parte do garoto, Lincoln Horta, resolveu lançar mão de uma passagem bíblica para fazer valer o seu ponto de vista e justificar a negativa a uma oferta de Luiz Glória, que propunha dividir o prêmio e encerrar assim a disputa.

 

“Esse fato nos faz voltar às páginas da História Sagrada, lembrando-nos o caso das duas mulheres que, na presença do sábio Rei Salomão, disputavam a posse de uma inocente criança, ambas afirmando que o filho lhe pertencia", argumentava o advogado de Edson. “Mas, quando Salomão ordenou que se cortasse ao meio a criança e desse a metade a cada uma das contendoras, qual delas se negou a que tal fato se consumasse?”, dizia, na edição do dia 4 de março daquele ano.

 

Na sequência, Lincoln Horta pressionou ainda mais o cambista “sênior”. Também na Justiça, o advogado fez um requerimento para que Luiz Glória fizesse um exame de sanidade mental. A estratégia deu certo. No dia seguinte, Gilberto Dolabela afirmava que, se não houvesse acordo amigável, abriria mão da representação de Luiz Glória e deixaria o caso.

 

 

A solução veio, enfim, estampando as páginas do Estado de Minas de 13 de março, 15 dias depois do início da contenda na Loteria Federal: “848 mil cruzeiros para o menor e 200 mil para o cambista: entraram em acordo sobre o prêmio do bilhete 03030”.

 

Resolução veio na forma de um acordo que repartiu o valor entre o menino e o ‘homem mau’

Resolução veio na forma de um acordo que repartiu o valor entre o menino e o ‘homem mau’

Arquivo/EM

 

Dolabela e Horta tinham resolvido a questão, e a quantia que seria repartida entre os dois já vinha com os descontos legais de 600 mil cruzeiros. O acordo também foi autorizado pela Justiça e pelo curador de menores, que autorizava o Banco do Brasil, que ainda retinha os valores, a fazer os depósitos. “Deste modo, alcançou uma solução boa para as partes em litígio o intrincado 'caso' do bilhete da Federal 03030”, finalizava a reportagem. Edson poderia enfim estudar e viajar, sem ter mais que correr as ruas do Centro de BH sob o sol escaldante para ajudar o pai – nem que dar satisfações ao “patrão”, a quem um bilhete “encalhado” também rendera uma boa consolação.