
Quem é você sem suas obrigações?
Tenho presenciado no consultório pessoas relatando que, quando têm tempo livre, sentem culpa por não estarem "sendo produtivas"
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Desde cedo, aprendemos que nossa identidade está ligada ao que fazemos. Somos estudantes, profissionais, pais, filhos, avós, cuidadores, provedores. Mas e se todas essas funções fossem retiradas? Quem seríamos sem os títulos, as responsabilidades e as obrigações diárias?
Na Terapia Sistêmica, entendemos que a identidade de uma pessoa é construída a partir das relações que estabelece. No entanto, quando nos confundimos com os papéis que desempenhamos, corremos o risco de perder o contato com nossa essência. Jung já dizia que “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”. Mas o que acontece quando não sobra tempo para olhar para dentro?

A sociedade moderna nos incentiva a medir nosso valor pelo que entregamos. Sem perceber, caímos na armadilha da autoimagem baseada no fazer. O sociólogo Zygmunt Bauman, em “Modernidade líquida”, descreve como vivemos em um tempo de relações e identidades frágeis, onde a produtividade se tornou um critério de validação. Trabalhamos incansavelmente para sermos reconhecidos, mas essa busca pode nos afastar do que realmente importa: quem somos além do que fazemos.
Um estudo publicado na Harvard Business Review (2021) apontou que muitas pessoas em cargos de alta exigência sentem uma perda de identidade ao se afastarem temporariamente do trabalho. A pergunta que permanece é: sem minha carreira, sem minhas funções, quem sou eu?
Tenho presenciado no consultório pessoas relatando que, quando têm tempo livre, sentem culpa por não estarem “sendo produtivas”. Isso reflete a crença de que só têm valor quando estão fazendo algo “útil”. O perigo está aí, quando nossa identidade está presa às obrigações, o esgotamento emocional se torna um risco. A American Psychological Association (APA) alerta que a sobrecarga de papéis pode levar a um estado de burnout, ansiedade e desconexão interna.
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Encontrar-se além das obrigações exige coragem. Um exercício interessante é se perguntar:
- Se eu não precisasse me preocupar com expectativas externas, o que eu faria por mim mesmo?
- O que me traz alegria além das responsabilidades?
- Como eu me descreveria sem mencionar minha profissão ou função na família?
- Quais eram meus sonhos e paixões na infância, antes de assumir tantos papéis?
- Que legado quero deixar, não em termos de produtividade, mas de impacto positivo na vida de outros?
- De que formas posso criar um equilíbrio mais saudável entre trabalho, lazer e descanso?
- Que pequenas mudanças posso fazer hoje para me reconectar com minha essência?
Nietzsche dizia que “tornar-se quem se é” é um desafio, pois exige libertar-se das narrativas que nos foram impostas. Esse caminho passa pela reconexão com o que nos dá prazer e significado. Pode ser através da arte, da contemplação, da escrita ou de momentos de silêncio.
Temos o direito de apenas ser. Se o tempo todo estamos sendo algo para os outros, quando sobra espaço para sermos para nós mesmos? O filósofo Byung-Chul Han, em “A sociedade do cansaço", afirma que vivemos um excesso de desempenho, onde o descanso é visto como improdutivo. No entanto, é justamente no ócio criativo que podemos reencontrar nossa verdadeira essência.
Pense bem, no final da vida, não seremos lembrados pelo quanto fomos produtivos, mas pela forma como vivemos e nos conectamos. Portanto, permita-se existir além das suas obrigações. Você não é apenas o que faz. Você é também o que sente, o que ama, o que sonha.
Carl Jung nos lembra que 'aquilo a que você resiste, persiste'. Então, em vez de resistir à pausa, abrace-a. Talvez seja nela que você se reencontre e se reinvente para ser quem é.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.