Uma série de artigos analisa se os benefícios inequívocos para poucos justificam os danos para muitos. A tendência atual é a utilização de rastreamentos personalizados e individualizados de acordo com os potenciais fatores de risco de cada rastreado.
Uma série de artigos publicados recentemente publicada na prestigiada revista médica JAMA Internal Medicine abordou a questão de saber se o rastreio do cancro realmente salva vidas.
Uma revisão sistemática e metanálise envolvendo mais de 2 milhões de pacientes mostrou que, com a possível exceção do rastreamento do câncer colorretal com sigmoidoscopia, a evidência atual não fundamenta a afirmação de que os testes comuns de rastreamento do câncer salvam vidas pelo diagnóstico precoce.
O estudo incluiu 18 ensaios clínicos randomizados de longo prazo mas sugeriu que a sigmoidoscopia (exame endoscópico do sigmoide - seção que liga a porção transversal do intestino grosso ao reto) foi o único teste de triagem com um ganho significativo ao longo da vida (ganho de 110 dias).
Entretanto, outros exames não tiveram resultados expressivos:
- Mamografia (0 dia)
- Teste de antígeno específico da próstata (PSA) para câncer de próstata (37 dias)
- Colonoscopia (37 dias)
- Exame de sangue oculto nas fezes (FOBT) todos os anos ou a cada dois anos (0 dia)
- Triagem de câncer de pulmão por tomografia computadorizada - TC (107 dias)
Os riscos relativos relatados de mortalidade por todas as causas para triagem versus nenhuma triagem foram 0,98 para sigmoidoscopia, 0,99 para colonoscopia, 1,00 para FOBT todos os anos, 1,00 para mamografia, 0,99 para testes de PSA e 0,97 para rastreamento de câncer de pulmão por TC.
Organizações, instituições e decisores políticos que promovem testes de rastreio do câncer pelo seu efeito em salvar vidas podem encontrar outras formas de encorajar o rastreio, como reconsiderar as prioridades e informar de forma realizar às pessoas interessadas sobre os benefícios, danos e custos dos testes de rastreio que consideram realizar.
A revisão sistemática e meta-análise incluíram quatro ensaios clínicos randomizados sobre triagem por sigmoidoscopia, quatro sobre exames fecais para câncer colorretal, quatro sobre triagem com PSA para câncer de próstata, três sobre triagem de câncer de pulmão por tomografia computadorizada para fumantes atuais e ex-fumantes, dois sobre mamografia para câncer de mama. e um sobre colonoscopia para câncer colorretal.
Devemos entretanto ressaltar que, embora possam não ter observado vidas mais longas com cinco dos seis testes de rastreio, isso não significa que alguns indivíduos não prolonguem as suas vidas com o rastreio. Sem rastreio, estes pacientes podem ter morrido de câncer porque este teria sido detectado numa fase posterior e incurável. Assim, esses pacientes experimentam um ganho ao longo da vida.
No entanto, já outros indivíduos sofrem uma perda de vida devido aos danos associados ao rastreio ou aos tratamentos do câncer detectados no rastreio, tais como perfuração do cólon durante a colonoscopia ou enfarte do miocárdio após prostatectomia radical. Por isso a tendência atual é a de se considerar rastreamentos personalizados, ou seja, individualizados considerando-se os fatores de risco de cada pessoa, quer sejam os genéticos (as síndromes hereditárias de predisposição a câncer) e epigenéticas (como os fatores de risco pessoais e ambientais, como tabagismo, etilismo, obesidade, hábitos alimentares, sedentarismo, exposição ao sol ou irradiação e exposição a carcinógenos químicos e biológicos).
As diretrizes de rastreio do câncer são frequentemente desenvolvidas por profissionais de rastreio, organizações de rastreio e representantes de pacientes, com os seus interesses pessoais. Uma proposta mais racional seria a de que as diretrizes de triagem não permitam que indivíduos ou organizações com interesses clínicos, financeiros ou intelectuais desempenhem funções de liderança no desenvolvimento de diretrizes. Isso melhoraria a qualidade e a confiabilidade das recomendações.
Os pesquisadores também analisaram os exames de sangue para avaliação de DNA tumoral circulante (biópsia líquida) para detecção precoce de múltiplos tipos de câncer (MCED) e seu papel no rastreamento do câncer.
A utilidade clínica das biópsias líquidas para rastreamento de câncer deve ser comprovada através de grandes e bem desenhados estudos clínicos, considerando-se que estes testes acrescentarão custo, complexidade e efeitos adversos não intencionais para os pacientes rastreados. Embora a ideia de utilizá-lo seja atraente, uma vez que seria um teste único que poderia detectar muitos tipos de cancro, e poderia simplificar e padronizar o rastreio do câncer, a baixa sensibilidade dos testes de rastreio multicancerígenos para tumores em fase inicial levanta questões sobre se a triagem poderia ou não auxiliar os pacientes a viver mais ou melhor.
Além disso, considerando que o custo atual do Galleri – um teste MCED que está a ser avaliado num ensaio aleatório no Reino Unido – é de 949 dólares por pessoa, custaria cerca de 100 mil milhões de dólares por ano, ou cerca de 10 vezes o orçamento de 2023 do CDC (Centro para Controle de Doenças) americano, se fosse concedido anualmente a todos os residentes dos EUA com mais de 50 anos. Claramente, este custo justifica uma demonstração rigorosa do benefício - que os pacientes estão vivendo mais ou melhor - em grandes ensaios clínicos randomizados.