Abuso infantil  -  (crédito: Febrasgo.org.br/Reprodução)

Abuso infantil

crédito: Febrasgo.org.br/Reprodução

 

Outro dia estava conversando com uma pessoa que me contava sobre uma menina de 14 anos que tinha resolvido se casar. Ela achava um absurdo a família concordar com um casamento de uma menina dessa idade com um homem jovem, mas que tem por volta de 20 anos. Eu também acho um absurdo, sabendo o que significa um casamento. Não acho que ninguém com menos de 18 anos deveria poder se casar, nem com o consentimento dos pais. Mas na visão conservadora, as famílias preferem que uma adolescente se case muito cedo, garanta seu homem, porque mulher sem homem vale menos.


Essa situação da família empurrar meninas para homens é muito comum no Brasil, comum e naturalizada. Tão naturalizada que nesta semana, o STJ absolveu um homem de 20 anos que engravidou uma menina de 12 anos.


A Justiça de Minas Gerais chegou a condenar esse homem por estupro de vulnerável conforme previsto em lei. O artigo 217-A diz: “É crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. É um crime hediondo, um dos piores crimes que se pode cometer, uma criança de 12 anos que não está apta a consentir com uma relação sexual, já que ela não tem maturidade para tal. No entanto, os ministros da 5º Turma do STJ, em sua maioria, entenderam que, neste caso, a lei não se aplica.


Até 2005, o casamento da vítima com o estuprador anulava o crime de estupro no Brasil. A legislação ficou em vigor desde 1940 nos chamados “Crimes de Costume” que, com a mudança na legislação, hoje são chamados de “Crimes contra a Dignidade Sexual”. Nos tempos dos crimes de costumes, o estuprador era absolvido caso se casasse com a vítima. Ou seja, se casava para continuar estuprando a vítima com o aval da Justiça.


Quase 20 anos se passaram e nosso Judiciário machista retrocede e deixa impune um homem de 20 anos que fez sexo e engravidou uma criança. As justificativas para a absolvição são muitas: porque chegou a morar com a vítima, porque não sabia que estava cometendo o crime, porque contou com a aprovação inicial da mãe da criança. Como se uma mãe tivesse direito de entregar sua filha de 12 anos para um homem adulto. Como se o pobre homem adulto tivesse sido seduzido pela criança.


“ME APAIXONEI”

Daniela Teixeira, a única mulher que votou no caso disse: "Eu apelo: não abra uma porta de horror que fará com que as nossas crianças, as nossas meninas, tenham como excludente de tipicidade de estupro de vulnerável a simples questão de o homem, maior, às vezes chefe do pai dela, no interior do Brasil, dizer: ‘Eu me apaixonei por essa criança’”.


A porta, que mal tinha se fechado, foi escancarada. Nossos esforços pelo combate ao abuso sexual infantil nunca são suficientes o bastante para superar o machismo e o conservadorismo desse país. Para o ministro, é importante evitar o "esfacelamento da relação pai e filho, causando traumas muito mais danosos do que se imagina".


Que trauma seria mais danoso que um estupro para uma menina de 12 anos que se tornou mãe ainda criança? Que vai ter sua vida escolar prejudicada. Conforme dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), de 2019, a gravidez e afazeres domésticos são os dois principais motivos para a evasão escolar entre meninas.


Quando uma pessoa defende um estuprador, essa pessoa diz muito sobre si mesma, sobre quem é e o que ela quer proteger, sobre os próprios conceitos. Se a própria Justiça brasileira não reconhece a lei brasileira, quem vai reconhecê-la? Quando a gente pensa que deu um passo à frente, acontece alguma coisa e a gente volta três casas.