Maternidade e o encontro com a própria sombra -  (crédito: Freepik)

Maternidade e o encontro com a própria sombra

crédito: Freepik

Desde que comecei a trabalhar com maternidade, há quase 15 anos, vejo gente recomendando o livro "A maternidade e o encontro com a própria sombra", de Laura Gutman. Não é um livro que eu recomendo, porque ele coloca todo o peso do cuidado com as crianças nas costas das mães. Esse discurso maternalista vem sendo repetido à exaustão. E muita gente compra, eu já comprei. E a gente compra, e sofre por não conseguir ser a mãe “Padrão Ouro”. Esse discurso tóxico da responsabilidade única individual adoece, culpabiliza e sobrecarrega.


Assisti a uma palestra da autora, queria ver se ela tinha atualizado suas ideias, ou se eu conseguiria entender de uma forma diferente o discurso dela. Ela conseguiu ser divertida e leve em alguns momentos, mas o discurso maternalista estava ali, forte, em cada frase, cada palavra. Algumas coisas me marcaram mais, de forma muito negativa. Ela afirmou que não existe depressão pós-parto, que as mães choram muito e ficam tristes, porque sofrem violência obstétrica no parto, e porque não estão acostumadas com um bebê e toda a situação que é nova. Quando questionada sobre diagnósticos de autismo, ela disse que não é diagnóstico, é falta de conexão da mãe com a criança. Esse discurso de que todo o comportamento dos bebês e crianças é causado por falta de conexão ou outras questões relacionadas à mãe, joga nas costas da mulher todo o peso e toda a culpa.


No CID, a depressão pós-parto consta na categoria “F53 – Transtornos mentais e comportamentais associados ao puerpério, não classificados em outra parte”. Autismo é um transtorno fortemente genético, com uma herdabilidade estimada de mais de 90%, e pode ser herdado da mãe e do pai. Uma pesquisa de 2019, feita com 2 milhões de pessoas de cinco países diferentes, pelo JAMA Psychiatry mostra que cerca de 97% a 99% dos casos de autismo têm causa genética; destes, 81% são hereditários.

 


A maternidade que Laura prega é a maternidade “Padrão Ouro”, que poderia funcionar para mães de classe média alta, com uma super rede de apoio, família, empregadas e babás. Que podem realizar um parto humanizado na banheira do Einstein, que podem se dar ao luxo de tirar uma licença-maternidade de 20 anos e ter um marido também “Padrão Ouro”, rico e que sustente tudo isso financeiramente. Esse ideal de maternidade exclui mães-solo, exclui casais homoafetivos, exclui pessoas periféricas, pessoas assalariadas etc. Um padrão de maternidade irreal para a maioria das famílias. E, se a maioria das famílias não tem condições de criar filhos dessa forma, teremos nós, mortais, filhos problemáticos?


Sabendo tanto sobre o adoecimento físico e mental materno, causado pela sobrecarga materna que é um estado de esgotamento que afeta a saúde das mulheres devido à grande quantidade de tarefas e a todas as necessidades que precisam suprir em relação aos cuidados com os filhos; sabendo que essa autocobrança e as cobranças externas, somadas à falta de um parceiro ativo, contribuem para o burnout materno; sabendo que em 2022 mais de 164 mil crianças foram abandonadas pelo genitor ainda no útero materno; sabendo a respeito da solidão da mãe-solo e da falta de rede de apoio, como validar esse discurso que faz com que mães se cobrem ainda mais e acreditem que precisam dar conta de tudo? Impossível.


Gutman também afirmou que apenas as mulheres conseguem fazer esse mergulho para se conectar com os bebês, porque somos mamíferos - o discurso do "instinto materno", que comprovadamente foi uma invenção do ser humano para nos colocar nesse lugar do cuidado como se ele fosse o natural, e que, mais uma vez, joga toda a responsabilidade em relação aos cuidados com os filhos nas costas da mãe.


Esses discursos românticos são, no fundo, uma agressão, porque culpabilizam as mães que já têm que passar pelo julgamento da sociedade diariamente. Existem muitas formas de maternar com amor, cada mãe deve definir qual dessas formas é possível para ela, porque jamais seremos mães perfeitas, jamais conseguiremos exercer a maternidade “Padrão Ouro”, mas nossa capacidade de amar os nossos filhos e cuidar deles com todo carinho é infinita.