Todo brasileiro deveria ler a trilogia de Antônio Scurati. Em “M – O homem da providência”, descreve, já na abertura, o mal-estar gástrico de Benito Mussolini, frente à crise desencadeada pela descoberta, “por uma cadelinha em um matagal da zona rural romana”, do cadáver do deputado Giacomo Matteotti.

 

Estava “dobrado em dois, com as pernas viradas para baixo das costas, em uma fossa pequena demais, cavada às pressas...” Mussolini diz para si: “É verdade, não há dúvida, o deputado Giacomo Matteotti morreu. Os meus fascistas o trucidaram”. Matteotti combatia o fascismo e denunciava a lista das surras, incêndios e assassinatos contra oponentes pelas mãos das milícias fascistas.

 

O fascismo de outrora é diferente do neofascismo por um único motivo. Os fascistas de então queriam a consolidação dos Estados nacionais totalitários. Os neofascistas de hoje defendem a ordem transnacional, que interessa às big techs. Querem se possível destruir alguns Estados periféricos, em nome de outros Estados maiores, a serem criados, e que defendam a transnacionalização dos mercados globais. Quem deseja entender o conflito e as motivações de Elon Musk no Brasil e de seus defensores, basta dar uma olhada nos contratos que a sua rede StarLink fez com o governo Jair Bolsonaro: envolve a Amazônia e as zonas rurais brasileiras. Aí está uma das pontas do problema.

 


Mas o processo de destruição dos Estados nacionais periféricos não é coisa simples: os Estados que entraram na lista daqueles a serem abolidos andam se rebelando. E hoje o mundo prende a respiração à porta de um conflito global, só comparável àquele que Mussolini assistiu e foi protagonista.

 

No plano interno, não só um, mas dois cadáveres assolam o bolsonarismo. O crime deslindado de Marielle Franco e de Anderson Gomes voltou com força à cena nacional na última semana, com a votação na Câmara dos Deputados da manutenção da prisão de um dos acusados de mandante, o deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ).

 


Os deputados da extrema direita engoliram as frases tão corriqueiras como: “Bandido bom é bandido morto” ou “CPF cancelado”, que proferem quando a polícia ou a milícia trucida pessoas comuns na periferia. Trocaram a chave para “bandido meu é bandido bom”, em defesa de seu “bandido de estimação”. Os nomes desses parlamentares circularam em listas nos principais jornais, compartilhadas nas mídias digitais. Vão voltar à cena nestas e nas futuras eleições. Os eleitores e seus concorrentes desejarão reavivar tais contradições.

 


O cenário é ruim para a extrema direita brasileira: os cadáveres em cena cristalizam uma rejeição. O cenário só não é pior porque o governo Lula continua errando, mais do que o razoável. Lula perde popularidade porque voltou as costas para quem o elegeu e só consegue fazer políticas de conciliação no campo da oposição. Quando acordar para a realidade, poderá ser tarde.



Por outro lado, Lula não erra sozinho. As cortes superiores parecem ter se distraído da função principal, que é colocar entre as grades os mandantes dos crimes de 8 de janeiro. E aqui valem três lembranças aos envolvidos, seja na luta pela manutenção do Estado democrático de direito (e/ou ao que restou dele) ou seja para aqueles que estão na outra ponta, os neofascistas tupiniquins. Para as autoridades judiciárias, não é possível esquecer o que planejavam fazer com elas, se o 8 de janeiro tivesse dado certo.

 

Para o atual Executivo, é bom recordar que o fascismo de Mussolini sobreviveu à crise de Matteotti e ascendeu. E para o campo bolsonarista, que não parece ter apreço pela leitura, vale mencionar que se Mussolini soubesse de seu fim, provavelmente teria desejado que a sua história acabasse ali mesmo. Quem duvida, consulte as imagens. A internet pode oferecer uma boa indicação de como costumam terminar aqueles que manipulam segmentos de uma população ao matadouro.


NOTAS


Bíblia em diálogo....

 

A pedido do papa Francisco neste pós-COVID, a temática da “Doença e o sofrimento na Bíblia” será objeto de pesquisa da Pontifícia Comissão Bíblica, com o propósito de promover entre católicos o estudo bíblico de questões emergentes e questões já debatidas, contrastando, por meios científicos, opiniões equivocadas em matéria de Sagrada Escritura. Nomeado pela primeira vez pelo papa Francisco em 2014, o reitor da PUC Minas, padre Luís Henrique Eloy e Silva, foi reconduzido à função e é, neste momento, o único representante brasileiro da comissão, que tem integrantes do magistério eclesiástico de 20 nações.

 

Com a atualidade

 

“Atualmente, estamos trabalhando o texto que deverá vir à luz em três anos”, afirma o reitor Luís Henrique Eloy e Silva. Será a primeira vez em que o documento da comissão trará capítulo específico da temática, transposta em diálogo com o mundo contemporâneo. Luís Henrique Eloy e Silva retornou neste sábado do Vaticano, onde a comissão se reuniu em plenária. Na sequência, os seus membros, que ficaram hospedados na Casa Santa Marta, onde reside o papa Francisco, foram recebidos em audiência formal.

 


Tortura de Estado

 

Neste ano em que o país registra os 60 anos do golpe militar, Minas Gerais ainda segue em dívida histórica com as pessoas torturadas pelo aparelho repressivo da ditadura. Segundo Robson Sávio Reis Souza, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais, em Minas Gerais, seguem em aberto, sem a devida indenização, 200 processos de pessoas vítimas de tortura, que representam um quarto dos pedidos de reparação apresentados à Comissão Especial de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivit).

 


Vista grossa

 

Diferentemente, São Paulo e Rio Grande do Sul, pagaram, respectivamente, 1.851 e 1.670 indenizações a pessoas vítimas de tortura ou a seus familiares – o equivalente a 83,6% e 98% dos processos de reparação apresentados em face do Estado. “Essa é uma comissão implementada no governo Itamar Franco, em cumprimento à Lei 13.187/1999. Entre 2002 e 2018, o estado de Minas Gerais pagou 585 indenizações a vítimas de tortura”, afirma Robson Sávio Reis Souza. “No primeiro mandato e até este segundo mandato do governo Zema não foi paga uma única indenização. Não há vontade política. É um absurdo uma questão de Estado ser tratada assim”, afirma.

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