O número de casos de dengue explodiu novamente. Ano após ano, o problema se repete, assim como o discurso preventivo clássico e ineficiente. Culpar e matar mosquitos, combater a sua prole, besuntar-se de repelente, chamar o Exército para combater a epidemia, decretar emergência sanitária e culpar o vasinho de flor, são os discursos do momento e dos últimos 40 anos.

É verdade que 80 % dos criadouros de Aedes estão dentro ou próximo das casas das pessoas. Porém, transferir para a população o próprio infortúnio é crueldade. Culpar o doente pela sua doença é desconsiderar o contexto sociológico determinante das pessoas viverem onde vivem e agirem como agem.

As imagens televisivas reforçam o discurso escapista oficial. Vasinhos de flor com larvas do mosquito são exibidos como vilões da epidemia e responsáveis pela tragédia de saúde pública. Ao mesmo tempo, fumacês passeiam pelas ruas num jogo de cena do “faz de conta que estamos resolvendo o problema”. Em ano eleitoral, epidemias não são bem-vindas, mas servem para justificar gastos sem lastro de uma “emergência” que dura quase meio século.

Atribuir à postura desleixada da população e principalmente ao vaso de flor a responsabilidade pela epidemia de dengue e outras arboviroses, além de pouco poético, é injusto e ingênuo. Tal tipo de interpretação de um problema dessa complexidade, esconde a desigualdade social e a crueldade imposta pelo modelo de desenvolvimento vigente como gerador e mantenedor de epidemias.

A grande maioria da população não escolhe viver em locais sem saneamento básico, sem coleta regular de lixo e sem emprego. Se as pessoas não conseguem controlar o seu destino, não controlam o comportamento dos seus vizinhos, os quais compartilham o mesmo caos urbano, que, por sua vez, favorece mais a vida dos mosquitos do que a dos seres humanos.

As grandes epidemias escancaram a ausência do Estado em locais de maior vulnerabilidade social. Onde o estado não se faz presente, prolifera a criminalidade, mosquitos e igrejas, conforme pesquisa do IBGE amplamente divulgada pela imprensa na semana anterior.

Brigar contra o mosquito é briga ruim. Contra o Aedes especificamente, é pior ainda. São 190 milhões de anos de adaptação evolutiva que destruiu dinossauros e dizimou exércitos poderosos ao longo de milénios. Não é qualquer Exército que controla o mosquito. Esse tipo de combate exige educação de qualidade, oportunidades iguais de acesso à formação universitária, investimento em ciência e pesquisa direcionado a melhorar a vida de todos.

Sendo as arboviroses problemas de países na sua maioria pobres e com sérios problemas de governabilidade, concentrados em áreas tropicais e subtropicais, o investimento em pesquisa tem pouco apelo para os grandes investidores internacionais. A menos que interesses financeiros poderosos sejam comprometidos, esses problemas tendem a se tornar crônicos nos seus países de origem.

Resolver problemas de saúde pública com a lógica do acúmulo e concentração de riqueza é enxugar gelo. Por exemplo, apenas a indústria de repelentes arrecada mais de US$ 11 bilhões por ano para espantar mosquitos. Apesar de fazer parte de uma estratégia multimodal de combate às arboviroses, essa medida usada de maneira isolada é cara, pouco eficaz e dá às pessoas uma falsa sensação de segurança.

O combate à dengue e outras arboviroses exige uma linha de cuidados complexa, mas não impossível de ser implementada. Medidas de barreira contra o acesso do mosquito às pessoas são importantes. Repelentes, cortinados, tela nas janelas ajudam quando associadas a outras estratégias. O combate ao vetor é fundamental, nesse sentido, informar a população é crucial, desde que não ocorra apenas nos momentos epidêmicos.

Além disso, o uso de estratégias tecnológicas sofisticadas, como a dispersão de mosquitos colonizados com a bactéria Wolbachia, impede que o vírus se desenvolva no mosquito. Ciência entomológica a serviço da saúde pública, já aplicada em vários municípios em caráter experimental com resultados muito promissores.

O desenvolvimento e disponibilização de vacinas contra a dengue para toda a população certamente é uma das mais importantes medidas farmacológicas de combate a essa doença. Torná-la disponível para todos é o grande desafio.
A pesquisa de medicamentos eficazes contra o vírus na fase aguda da doença é a próxima barreira. Diminuir o período de circulação do vírus nas pessoas infectadas pode minimizar sintomas e complicações clínicas, além de reduzir a chance de transmissão do vírus para outros mosquitos e bloquear a circulação viral.

Modernizar nosso sistema de vigilância epidemiológica para que os dados sejam coletados em tempo real e permitam um planejamento ágil e efetivo é básico e plenamente exequível. Entretanto, exige decisão política racional. Aí é que as coisas costumam complicar.
Por fim, repensar o nosso modelo de desenvolvimento e distribuição de riqueza é a última e derradeira barreira para a resolução deste e de outros problemas de saúde pública que enfrentamos. Haja vasinhos de flor para nos culparmos por nossas próprias mazelas. 

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