O Cine Brasil de Ibiá é o meu Cinema Paradiso. Foi lá que conheci Sansão & Dalila, Tarzan, Zorro, Django, Ben-Hur, Grande Otelo, Pelé, Ademir da Guia, Garrincha e seus dribles desconcertantes. 

Inspirado por beijos apaixonados na tela, com jeitinho e temor, peguei a mão de uma menina pela primeira vez. Arrepios e testosterona até na alma. Dependendo da “picância” do filme, o mictório se transformava num local de duríssima batalha coletiva e Felliniana de “5 contra 1”. Nossas musas eram homenageadas e aplaudidas de pé.

Políticos fardados pós 64 com suas medalhas envergonhadas e anistiadas eram sistematicamente vaiados. Não por convicção política, mas por atrasarem as cenas dos biquínis de Copacabana, efusivamente recebidos com assobios de fiu-fiu.

O Canal 100 abria todas as sessões. Era tão ou mais importante e esperado que o filme do dia. Jornal atrasado com notícias atemporais. O gol, as defesas milagrosas e as jogadas permanecem em câmera lenta em nossas vidas. Atravessaram o tempo e impregnaram retinas.

A torcida e seus personagens eram capturados por lentes mágicas e são o registro de um povo que já não percebemos em nossos estádios. As arenas devoravam os “torcedores-raiz” de sorriso aberto e franco de quem torce com a alma e faca nos dentes virtuais. Dentadura de ouro na boca de gastrostomizados. Estética hermética e seletiva.

O futebol mudou. Os olhos que o assistem também. O 4K é nitidamente excludente e obscuro. O jogo ficou mais rápido e a fratura social exposta nas arquibancadas. Não encontramos mais desdentados ao nosso lado. Nem na geral! A geral sumiu! A vibração é oculta e silenciosa. A acústica não ficou boa ou as cordas vocais desafinaram?!

Ingressos disputados à unha, na porta dos estádios, foram substituídos por aplicativos e QR Codes. Ficou mais fácil? Nem tanto. Para comprar ingresso, o pré-requisito é ter curso básico de informática, baixar aplicativos e possuir um smartphone de última geração, o qual deve ser apresentado junto à carteirinha de sócio em vários momentos antes do acesso ao templo dos afortunados. 

A ditadura digital está em tudo! Do X-burguer que substituiu o churrasquinho de gato ao tropeiro sem “ovo zoiudo” por cima. Tudo no cartão ou Pix. Mostrar uma nota de papel é ofensa. Pedir o troco é fator de risco para a convulsão do vendedor. Onde já se viu, dinheiro de papel?! Facilidades que triplicaram o preço da diarreia do dia seguinte. Essa continua igual e certa.

Cerveja, somente até o final do intervalo do primeiro tempo. Obrigatoriamente sem álcool! Afinal, a blitz da Lei Seca o espera, estrategicamente posicionada na porta do estádio. Lei de crentes para descrentes no templo profanado dos reis. Extorsão, antes, durante e depois.


Até mesmo o gooooool virou uma incógnita. O VAR fez do orgasmo coletivo um coito interrompido. Se com um juiz já era complicado, com vários e múltiplos interesses em jogo, o resultado é “imprevisivelmente previsível”. As Bets podem fazer o milagre de transformar probabilidades em certezas de cartas marcadas. 

E o futebol, onde foi parar?! Nas SAFs (Sociedade Anônima do Futebol), claro!  Verdadeiros projetos de concentração de riqueza e trampolim político ao velho estilo das capitanias hereditárias. Tudo diferente e absolutamente igual sempre foi. Exploração da paixão das massas com fins bem definidos. Nas arenas de hoje, os leões são bem mais vorazes que aqueles que frequentavam o Coliseu. 

Incentivadas por tarifas tributárias reduzidas a 5%, as SAFs prosperam tanto quanto templos religiosos, só perdendo em isenção de impostos para esses últimos, que gozam de tarifa zero. 

Paixão e fé, pão (alimento da alma) e circo a condenar-nos à mediocridade ilusionista de liberdade, poder e felicidade dentro de uma redoma de privilégios para poucos. Cenário perfeito para um final catastrófico que o Canal 100 jamais mostraria.