“É aqui qui eu sô inteiro. É aqui qui eu sei onde é lá. Falu e sei qui cê intendi.
Isso é meu, seu, di todu mundu.


É aqui qui sei o tôco di amarra minha égua.


Bichinho di pé bom, qui da cocerinha sem inframá é só daqui mesm.


Intè quandu cê nu mi intendi, intendi.


Bom di mais da conta sô!


Êêêê Brasilzão bom!


Temlugámiònão.


Si tem num presta.


Pula o mar igualzim te insinei pulá o rego da orta:


Um pé lá otru cá, otru lá e despois otru cá.


Vai mais vê se vorta, num pulo só, tá bom?


Vai com Deus e o diabo atráis tocanu viola.”


Esse foi um dos últimos diálogos que tive com meu avô antes de ir para a Alemanha para um estágio no final da década de 1970. Foi a resposta à pergunta que lhe fiz: “Vô, por que você gosta tanto assim do Brasil?”.


Ele estava sentado no seu banquinho favorito no rabo do fogão a lenha. Deu um trago no cigarro e soltou essa pérola. Voltei depois de um longo período fora do país. Cheguei a tempo de vê-lo e acolhê-lo nos seus últimos suspiros. Amante da vida, despediu-se dela contrariado, aos 92 anos.

 




Fumante de Mistura Fina sem filtro, cigarro de palha e hábito de sentar-se à beira do fogão a lenha pra “quentar fogo”, detonou o pulmão e, no final, já dependia de oxigênio domiciliar para se locomover dentro de casa. Ainda assim, ao ver cenas de sexo na TV, tinha que dobrar a oferta de oxigênio: “Aumenta esse gasogênio aí, meu fio“.


Certo dia, meu irmão, economista de mão cheia, o surpreendeu rindo de perder o fôlego em companhia do Dentinho, funcionário da fazenda. Dentinho o havia oferecido um cigarro diferente, feito com ervas plantadas na horta, próximo ao pé de couve.


Sob protestos do meu avô, a erva do “Pito da Risada”, como ele o chamava, foi arrancada e imediatamente queimada. Dentinho sucumbiu em lágrimas e dançou como um Pajé em torno da fogueira, buscando a última fumaça mágica para dentro dos seus pulmões.


Décadas se passaram e ainda hoje o tema do “Pito do Risada” é discutido de forma acalorada nas mais altas cortes do país. Legal ou ilegal?! Apesar de já ter tido seu uso regulamentado em vários países, aqui foi transformado no “nós contra eles”. Deus contra o diabo. Direita radical contra esquerda.


Mais uma vez, um tema de saúde pública, segurança e economia transformado em debate moralista e religioso-eleitoreiro. Semelhante ao “PL do estuprador”, em tramitação na Câmara dos Deputados. Hipocrisia pura!


Como chama atenção o professor João Cezar de Castro Rocha, titular de literatura comparada (UERJ) em seu artigo no ICL Notícias de 26/06/2024, intitulado “Teología do Domínio: Fundamentos - Projéto Nikolas Ferreira -II”, “tal disposição dicotômica ilumina o vínculo da extrema direita com o nacionalismo cristão. Em ambos os casos, o projeto político-autoritário tem como pressuposto paradoxal a negação da política”. Ele conclui: “O abjeto projeto de Lei 1904 não deve ser visto como um ato isolado, por mais absurdo que pareça. Pelo contrário, trata-se de mais uma peça do quebra-cabeça fundamentalista que a extrema direita tenta montar. Desvendar o propósito é uma forma de combatê-lo”.


Ou seja, estamos vivendo tempos complexos e perigosos. A discórdia polarizada em tempos eleitorais atinge em cheio nossos relacionamentos mais próximos e familiares. É preciso evitar o pior! Sempre! Mesmo que para isso tenhamos que engolir alguns sapos. Nem todos são deglutíveis, é verdade!! Mas alguns são necessários.


Há poucos dias, em almoço de família, um dos presentes voltou a tocar em um assunto político que nos separou durante os últimos anos: “Vocês viram o vestido da Janja?! Horrível né?!”. Ferida aberta é frágil! Não é prudente escarificá-la, principalmente com anestesia etílica, por mais banal que seja. Nitroglicerina pura.
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Com jeito, mas “sem nove horas”, sugeri um acordo doméstico, o qual proponho a outras famílias separadas pela septicemia política descontrolada: “Vamos falar sobre o que nos uniu durante a vida toda e evitar o que vem nos separando?!”. Aí vale, poesia, música, culinária e belos “causos de família”, como diria meu avô. A profilaxia da discórdia exige moderação, pensamento consequente, maturidade, racionalidade e bem querer. Radicais não cabem nesse cenário, assim como pessoas sem compromisso com o futuro e os sem noção. Complicado, mas possível.


Obviamente, isso não significa aceitar o Brasil Paralelo que estão tentando construir através da estória que mistura alhos com bugalhos e desconstrói a verdadeira HISTÓRIA em nome de um projeto de poder, exclusão social e concentração de riqueza.


Trata-se apenas de preservar o momento e o tempero da família.

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