Nascemos estéreis. Virgens de qualquer bactéria no corpo. Ao passar pelo canal vaginal, entramos em contato com os primeiros micro-organismos que nos colonizam. O beijo e as lágrimas de felicidade da mãe e do pai nos fornecerão as bactérias mais carinhosas que jamais conheceremos. Aos poucos, elas vão se ajeitando em minúsculos espaços da pele, boca, intestinos e vias respiratórias.
Em poucos dias, serão maioria nesse novo ser que acaba de nascer. Dois mundos em dimensões distintas, compartilhando o que chamamos de vida. Enganam-se os que acham que esses dois universos são pura harmonia. Pelo contrário. Precisamos de um exército de células de defesa, bem treinado e capacitado pela seleção natural para conter a fome desses minúsculos seres. Do primeiro ao último dia da nossa breve passagem por esse planeta, elas tentam alcançar espaços que não lhes pertencem. Cerca de 7 mil atentos leucócitos circulando por artérias e veias nos manterão vivos. Enquanto brincamos, crescemos, amamos, rimos e sofremos, eles trabalham para manter nossos planos e ilusões.
“Viver é perigoso”, assim disse Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Microrganismos alienígenas inevitavelmente nos encontrarão ao longo da vida. Nesse momento, contamos com uma tecnologia aliada, desenvolvida há menos de um século: os antibióticos. Além dos invasores, eles são “fogo amigo” contra nossa população microbiana, com a qual nascemos e estamos familiarizados. Os seres que ocuparão esse espaço vazio deixado em nossa pele e mucosas, geralmente são resistentes a essas drogas fantásticas, que, juntamente com as vacinas e o saneamento básico, nos deram a longevidade que temos hoje.
Quanto mais vulneráveis estivermos, mais necessitamos de antimicrobianos para nos mantermos vivos, e mais resistentes se tornarão as bactérias e fungos que nos habitam. Por mais sofisticada que seja a tecnologia, ela não chega nem perto da experiência planetária de mais de 3,5 bilhões de anos das bactérias e fungos.
As bactérias multirresistentes (multi-R) desafiam praticamente todos os antimicrobianos que temos disponíveis em nosso arsenal terapêutico, nos deixando, como médicos, sem opção para tratar os pacientes, particularmente aqueles mais graves.
A revista científica The Lancet publicou recentemente a estimativa de que, até 2050, 1,9 milhões de pessoas devem ser mortas todos os anos por infecções provocadas por bactérias multi-R, um aumento de 67% em relação à projeção de 2021. A OMS considera esta uma das 10 mais importantes ameaças de saúde pública global.
No último 26 de setembro, a Assembleia Geral da ONU reiterou o documento de compromisso de combate à resistência microbiana de 2016, o qual foi assinado por 192 países, inclusive o Brasil. Assim como os compromissos de controle da emissão de gases de efeito estufa, esse documento poderá ir para a gaveta dos representantes da maioria dos países signatários. Mas pelo menos é o reconhecimento da importância do tema para a saúde global e de que investimentos pesados deverão ser feitos em pesquisas para reverter esse cenário sombrio para os próximos anos.
Porém, um fenômeno ainda mais preocupante e de consequências devastadoras vem acontecendo no mundo e o Brasil não fica fora dessa: o crescimento do negacionismo. Ignorar o aumento da resistência microbiana, assim como a importância das vacinas, o aquecimento global e a urgência climática com consequências devastadoras é como não perceber o fogo no paiol.
Eventos climáticos extremos de origem natural eliminaram milhares de espécies do planeta no passado, o que de certa forma nos favoreceu enquanto homo sapiens. Entretanto, o que vivemos agora são alterações planetárias produzidas pelo próprio homem, com seu modelo de desenvolvimento predatório, extrativista, egoísta, imediatista e irresponsável.
Estamos neste momento com a temperatura média do planeta 1,5ºC acima do esperado por mais de 15 meses. Caso continuemos assim, em 2025 a temperatura média do planeta não voltará a patamares mais baixos. O aquecimento dos oceanos fará desaparecer recifes de corais e milhares de espécies marinhas, assim como florestas tropicais. O derretimento da calota de gelo do Ártico, além de reduzir o reflexo dos raios solares, permitirá a liberação de bilhões de toneladas de gás metano retido na profundeza dos oceanos, os quais, somados aos arrotos e puns do gado criado de forma extensiva em espaços que outrora foram florestas, em pouco tempo aquecerão ainda mais a temperatura do planeta.
Dessa forma, longe das metas do acordo de Paris e das várias COPs, com negacionistas no poder, o ponto de irreversibilidade do aquecimento do planeta estará mais próximo do que poderíamos imaginar. Se nada for feito para reduzir a emissão dos gases de efeito estufa, atingiremos 4ºC de aquecimento médio da temperatura global antes de 2150. Nessas condições, nossos netos e bisnetos não terão sequer a oportunidade de culpar os avós. Essa é a gravidade do momento que nos encontramos.
Quanto às bactérias, elas continuarão por aqui. Multirresistentes e com resiliência a intempéries infinitamente superiores às nossas, terão muito trabalho para limpar a sujeira que fizemos no Jardim do Éden.
Torço para que não errem a mão e inventem um ser menos doente do ponto de vista mental, mais responsável e respeitoso com o trabalho meticuloso feito pela natureza em bilhões de anos.
No momento atual, gostaria de esquecer e jamais ter conhecido a filosofia de Arthur Schopenhauer, mas com os resultados das eleições municipais deste final de semana pelo Brasil, percebo que colocamos nas mãos de incendiários o fósforo, a gasolina e o paiol.
Livre arbítrio! Culpa da maçã, daquela maçã!