Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Na sinfonia do caos americano

No palco dessa tragédia moderna, palavras são aprisionadas, identidades negadas, vozes silenciadas

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Em novembro de 2024, publiquei aqui um texto com o título “Apertem os cintos: lá vem turbulência e truculência”. Pois bem, o furacão Trump chegou à escala máxima. Concluí o texto com a célebre frase de Mário Quintana: “Eles passarão, eu passarinho”. Completo: “Mas, assusta, dói, estraga e demora”. Em tempo real, estamos assistindo, no coração da América, onde até pouco tempo brotava ciência em cada esquina, erguer-se uma sombra que ameaça engolir décadas de progresso na saúde global. Como folhas de outono que caem uma a uma, assistimos ao desmoronamento sistemático de pilares fundamentais: a OMS abandonada, os acordos de Paris esquecidos, a USAID silenciada. Até o canudo de plástico voltou!


 

 

 

 

Trilhões de dólares congelados dançam uma valsa macabra com o destino do Medicaid, enquanto os institutos nacionais de Saúde (NIH), gigantes da pesquisa biomédica, adormecem forçadamente em um sono inquieto. O CDC, guardião vigilante da saúde pública, recebe ordens para baixar suas armas justamente quando mais precisamos de sua parceria. 

 


 

 

No palco dessa tragédia moderna, palavras são aprisionadas, identidades negadas, vozes silenciadas. "Gênero", "transgênero", "LGBT", "não-binário" - termos que carregam histórias, lutas e vidas, agora proibidos de ecoar nos corredores do poder. O Relatório Semanal de Morbidade e Mortalidade, fiel cronista de seis décadas, pela primeira vez foi silenciado. Nos laboratórios e hospitais, pesquisadores e médicos movem-se como sombras, seus trabalhos interrompidos, suas vozes sufocadas pela autocensura. O The Lancet, testemunha dessa era sombria, observa os próprios revisores recuando, como soldados forçados a uma retirada não desejada.


A ajuda internacional, antes um rio de esperança, agora não passa de um filete d'água. O Plano de Emergência para o Alívio da AIDS vacila, deixando vidas suspensas por um fio cada vez mais tênue. Clínicas fecham as portas, enquanto profissionais de saúde são dispersos ao vento.

 


Em meio a esse cenário desolador, com gestos nazistas, vozes como a de Elon Musk lançam pedras contra a USAID, chamando-a de "maligna", como se o ato de salvar vidas fosse um crime contra a humanidade. As mulheres, em particular, veem seus direitos à saúde sexual e reprodutiva retrocederem à Idade Média. Nas sombras da história, ecos sinistros ressurgem nas madrugadas geladas das fronteiras americanas. Famílias são despedaçadas como páginas de um livro ao vento, crianças arrancadas dos braços maternos, numa cruel reedição de tempos que juramos nunca mais reviver. Os centros de detenção, prismas modernos de arame e concreto, espelham os campos de outrora, onde a dignidade humana era moeda sem valor. O choro dos pequenos, aprisionados em jaulas de metal, mistura-se ao silêncio ensurdecedor de uma nação que parece ter esquecido as próprias raízes imigrantes.


As nações emergentes e os povos mais vulneráveis tremem diante das políticas isolacionistas que emanam da Casa Branca. Os muros erguidos não são apenas de aço e concreto, mas de indiferença, sufocando sonhos e fragmentando laços de cooperação tecidos ao longo de gerações. Enquanto o gigante do Norte se volta para dentro, as sombras de suas decisões projetam-se sobre as economias mais frágeis, transformando esperanças em incertezas e prosperidade compartilhada em sobrevivência solitária.


Trump vê o mundo como a extensão de suas empresas. As ruínas de Gaza são para ele a oportunidade de construir shopping centers e Trump towers. As crianças famintas que perambulam perdidas de seus pais, que não mais existem, fazem parte do entulho que pode ser depositado em qualquer lugar do mundo.


Mas mesmo na mais escura das noites, a comunidade de saúde, veterana de tantas batalhas, ergue-se mais uma vez. Não com gritos de guerra, mas com a determinação silenciosa dos que conhecem seu valor e sua missão. A sociedade civil, jornalistas corajosos e políticos conscientes formam uma rede de resistência, provando que nem todas as ordens executivas são sentenças definitivas. A saúde, afinal, não conhece fronteiras. É um rio que corre livre, conectando todos os povos em uma corrente única de humanidade. A ciência, mais que uma ferramenta de conhecimento, torna-se uma ponte entre corações e mentes, unindo pessoas em busca de um bem maior.


Esta é a hora de recordar que cuidar não é fraqueza, mas a maior das forças. Que a equidade em saúde não é apenas um ideal, mas uma necessidade vital para a sobrevivência da própria civilização. Que cada vida salva é uma vitória contra a escuridão que ameaça nos engolir. Nas próximas estações dessa longa noite americana, a raiva e o medo não podem ser nossos guias. Como guardiões da saúde global, devemos nos manter firmes, unidos pela visão de um mundo onde o direito à saúde não seja um privilégio, mas uma realidade universal.


Revistas científicas sérias, sentinelas incansáveis, mantêm sua vigília, documentando cada passo dessa jornada turbulenta. Porque mesmo nas horas mais sombrias, a luz da ciência, da compaixão e da resistência continua a brilhar, lembrando-nos que após cada noite, por mais longa que seja, como diz Chico Buarque, “amanhã vai ser outro dia”.


E, assim, nesta crônica de nossa era, escrevemos não apenas um registro de perdas e retrocessos, mas um manifesto de esperança e determinação. Pois na sinfonia do caos americano, ainda podemos ouvir as notas persistentes em Sol Maior, do cuidado e da dignidade humana, tocando sua melodia eterna de esperança e renovação. Que os ecos dessa sombria tragédia ressoem como sinos de alerta à população do nosso Brasil, onde as conquistas democráticas, pétalas delicadas cultivadas com sangue, suor e esperança, não podem sucumbir à tempestade voraz da direita radical, faminta por poder e cega diante dos princípios de civilidade.

 

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