Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE em evidência

A morte da baronesa

A baronesa, com sua beleza exótica, é também uma espécie de filtro natural, alimentando-se dos dejetos que a poluição deixa para trás

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O mar azul da Bahia brilha como se quisesse desafiar o sol, nosso rei sem limites, que governa o céu com uma indiferença majestosa aos nossos dias de calor infernal. Em Arraial d’Ajuda, os dias passam com a lentidão de um romance de outono – refúgio dos dias insanos de trabalho, onde até o tempo parece se render aos encantos da natureza. Nesse cenário de beleza paradisíaca, o real se mostra em cada detalhe, sempre com um toque de ironia do destino.


Caminhar pela praia é uma obrigação que me imponho, quase como um ritual sagrado para tentar compreender meus passos e escolhas nessa vida. Tudo parece perfeito – bem, quase perfeito. Pois, se por um lado o horizonte se abre generoso, por outro, os “cadáveres de baronesas”, espalhados pelas areias claras, contam uma história bem diferente. E não me refiro aqui às damas da aristocracia, cujos títulos enfeitam cartas antigas de família. Falo da Eichhornia crassipes, carinhosamente conhecida como baronesa – o equivalente botânico do título feminino, destinado tanto à esposa de um barão quanto à mulher que, por direito próprio, ostenta tal distinção.


Mas, veja bem, a baronesa aqui não é uma senhora de bom gosto, tampouco traz consigo o glamour e o perfume da alta sociedade. É uma planta aquática, nativa da América do Sul, que se prolifera com audácia em ambientes poluídos - o que não falta pelas bandas de cá. Elas se multiplicam ao som de um recado bem claro: “Aqui tem merda”. São, na verdade, o selo de qualidade de um sistema que falha em cuidar do bem coletivo mais precioso que dispomos – a natureza.


Ora, ironicamente, a baronesa, com sua beleza exótica, é também uma espécie de filtro natural, alimentando-se dos dejetos que a poluição deixa para trás. Ela abriga peixes, oferece refúgio, mas quando a planta morre, tudo o que absorveu – os resíduos, as impurezas – é devolvido ao rio, como se a própria natureza quisesse nos lembrar que nada se perde. Assim, as praias, que deveriam ser palcos de alegria e beleza, tornam-se depósitos de esgoto a céu aberto. Um paradoxo digno do realismo fantástico de um conto, onde o que se quer limpar acaba sujando ainda mais o cenário.


A solução, por mais óbvia que pareça, não reside num feitiço ou numa poção mágica: é preciso tratar o esgoto que, de forma irresponsável, é lançado nos rios que deságuam no mar. Enquanto as prefeituras desses paraísos turísticos se limitam a remover, de forma paliativa, os “cadáveres de baronesas” que maculam a paisagem – e, por consequência, o ganha-pão dos moradores – o verdadeiro remédio estaria em investir em saneamento, por respeito à população e à natureza. Mas, como tantas vezes acontece, a burocracia e a desatenção transformam soluções simples em meras formalidades - com seus relatórios perdidos em gavetas obscuras de orçamentos secretos. 


Em meio a essas reflexões, a imaginação da minha filha, sempre ávida por desvendar os mistérios do cotidiano, exclamou: “Será que esses tufos de plantas fedorentas são corpos de alienígenas e restos de uma nave espacial que caiu no mar, pai?!”.


Uma pergunta que, na sua inocência, revela um olhar profundo sobre um mundo que, cada vez mais, se parece com um filme de ficção científica. Pois, se por um lado imaginamos os mistérios do universo, por outro, somos nós mesmos os verdadeiros alienígenas em um planeta que, lentamente, nos rejeita.
No mesmo dia, enquanto a televisão exibia notícias de um meteoro monitorado pela Agência Espacial Europeia, minha filha, com a seriedade que só a infância pode misturar com a fantasia, questionou: “Pai, e se o meteoro trombar com a Terra?”.

“Não sei, minha filha. Provavelmente, ele passará longe e não fará mal a ninguém”, respondi, tentando reduzir o pânico do desconhecido. “Mas e se for como naquele filme que assistimos?!”, perguntou. “Aquilo é só fantasia, filha. Não vai ter nada, não.” Na realidade, pensei com meus botões: talvez esse meteoro venha para nos salvar do vexame de sermos a única espécie “inteligente” que se autodestrói pela ignorância – disse para mim mesmo, com uma ironia amarga, enquanto refletia sobre a insanidade da lambança dos nossos próprios atos.


Assim, entre o real e o imaginário, percebo que a natureza, com sua sabedoria ancestral, nos ensina lições que o homem insiste em ignorar. A baronesa, com sua proliferação desordenada, é mais do que um mero sinal de poluição; é uma metáfora viva da decadência de um sistema que, embriagado no egoísmo do lucro a qualquer preço, se esqueceu de cuidar do próprio lar. Cada folha que se desfaz na areia, cada odor que denuncia a presença do esgoto é um grito silencioso que ecoa pelos recantos de um Brasil que, apesar de sua beleza, vive desde o descobrimento à beira do abismo e, agora, ainda flerta com a insanidade de uma direita radical.


E, assim, enquanto a maré levanta e recua, levando consigo os resíduos do passado, resta-nos a tarefa – por mais ingrata que seja – de repensar nossas atitudes. A mudança climática, os desastres ambientais, as tragédias de um planeta que chora, o calor sufocante, são convites à reflexão. Talvez, no cair da noite, quando o sol se despede e a baronesa se torna apenas um espectro na memória da praia, possamos, enfim, acordar para a necessidade de cuidar da nossa casa com o respeito que ela merece.


Entre a filosofia amarga e a ironia sutil, a verdade se impõe. Somos nós, com nossas contradições e descuidos, os verdadeiros responsáveis por esse cenário. E, como num livro de Murilo Rubião, o final – se é que há final – é um convite à mudança, à reconciliação com a nossa essência, antes que o próprio planeta decida nos exilar para sempre.

 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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