
O espelho da verdade e a hesitação vacinal
A desinformação prospera nesse terreno fértil de emoções, como ervas daninhas num jardim abandonado
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Na intimidade do consultório, onde as verdades se desdobram em histórias e vidas, reflito sobre a natureza da desinformação, do medo e da fresta por onde a mentira germina. Freud nos ensinou que o inconsciente é um teatro de sombras, onde medos e desejos dançam uma valsa interminável. A hesitação vacinal, percebi em anos de prática médica, é como um sintoma que emerge desse palco obscuro.
Espinosa, em sua sabedoria geométrica, diria que somos movidos por afetos - alegria e tristeza, medo e esperança. A desinformação prospera nesse terreno fértil de emoções, como ervas daninhas num jardim abandonado. Cada paciente que cruza minha porta traz consigo um universo de crenças, algumas tão arraigadas quanto raízes de sequoias centenárias.
Nietzsche sorriria ironicamente diante de nossa busca pela verdade absoluta. "Não existem fatos, apenas interpretações", diria ele, observando o caleidoscópio de narrativas que colorem nossa percepção da realidade. Ainda assim, como médico, sei que algumas interpretações salvam vidas, enquanto outras as colocam em risco.
Lembro-me de Dona Ritinha, parteira de Jequitaí, no Norte de Minas, senhora de olhos profundos e mãos calejadas, que me disse: "Doutor, tenho medo do que não posso ver". Suas palavras ecoaram como uma sirene de ambulância nas ruas vazias das madrugadas. O medo do invisível - vírus, vacinas, o próprio futuro - é uma sombra que nos persegue desde sempre. Ferreira Gullar diria que "a arte existe porque a vida não basta", e talvez a desinformação prospere porque a realidade às vezes nos parece insuficiente e complexa demais.
Freud nos alertaria: o medo da agulha pode mascarar medos mais profundos - da morte, do desconhecido, da perda de controle. A hesitação vacinal é apenas a ponta de um iceberg emocional que flutua em águas turbulentas do inconsciente coletivo e do vazio que nos permeia e apavora. Já Fernando Pessoa, em sua multiplicidade de vozes, compreenderia bem essa fragmentação do ser diante da incerteza.
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Na sala de espera, observo as telas dos celulares brilhando como vaga-lumes digitais. Cada scroll, cada compartilhamento, é uma pequena batalha entre verdade e mentira. A razão poderia ser nossa bússola nesse oceano de informações, mas como navegar quando a própria bússola parece enfeitiçada?
A medicina natural seduz com promessas de pureza e harmonia. É compreensível - num mundo cada vez mais artificial e robotizado, ansiamos pelo toque da natureza. Mas Freud nos lembraria que essa busca pelo natural pode ser uma forma de regressão, um desejo inconsciente de retornar ao útero materno, onde tudo era simples e seguro. O mundo da medicina natural também esconde suas contradições, interesses milionários e, principalmente, falácias metodológicas.
"Toda verdade é curva", diria Nietzsche, "o tempo mesmo é um círculo". As redes sociais são como espelhos distorcidos num parque de diversões. Cada algoritmo, cada bolha informacional, reflete nossas próprias crenças amplificadas. Espinosa nos alertaria sobre o perigo das ideias inadequadas, essas meio-verdades que nos mantêm prisioneiros de nossas próprias ilusões.
Como infectologista e cronista desse jornal, observo essa dança entre verdade e mentira com um misto de fascinação e preocupação. Cada consulta, cada palestra e cada encontro é uma oportunidade de construir pontes sobre o abismo da desconfiança. Às vezes, o silêncio diz mais que mil palavras - um momento de escuta atenta pode ser mais persuasivo que todas as estatísticas do mundo.
Fernando Pessoa nos lembra que "o poeta é um fingidor", mas o médico deve ser um buscador da verdade, mesmo que essa verdade seja multifacetada como um diamante sob diferentes luzes. A poesia da ciência está justamente em sua capacidade de transformar o caos em ordem, o medo em compreensão.
A verdade, aprendi, não é uma linha reta, mas uma espiral que se desenrola infinitamente. Freud nos ensinou a importância de desvelar camadas, de escavar significados ocultos. A hesitação vacinal é um sintoma de uma doença maior - a fragmentação da confiança social, associado à fragilidade e superficialidade do mundo líquido de Zygmunt Bauman.
Ferreira Gullar escreveu que "a vida é feita de pequenos nadas", e talvez seja nos pequenos gestos - um sorriso compreensivo, uma explicação paciente, um momento de empatia - que possamos reconstruir a ponte entre ciência, sociedade e mundo daquela pessoa.
Espinosa diria que a alegria é a passagem de uma perfeição menor para uma maior. Talvez nossa tarefa, como profissionais de saúde, seja justamente essa - ajudar nossos pacientes a atravessar a ponte do medo para a compreensão, da desconfiança para a confiança informada.
Nos primeiros dias do outono e no crepúsculo do consultório, enquanto organizo as últimas anotações do dia, penso em como cada pequena vitória contra a desinformação é uma luz que acendemos na escuridão. A verdade, semente teimosa, encontra sempre uma fresta para germinar e proteger aquela pessoa e toda a população da extinção iminente, que nos ameaça e está logo ali, na virada do próximo século.
E assim, entre cientistas, filósofos e poetas, entre o inconsciente e a razão, seguimos nossa jornada. A crônica da verdade continua a ser escrita, dia após dia, consulta após consulta, nas páginas infinitas da experiência humana. Porque, no fim, como nos ensina a poesia, é no encontro entre o científico e o humano que temos nossa melhor chance de vencer o medo, a mentira, a desinformação e evitar a dor e o sofrimento.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.