Comida afetiva. Se tem um hype que está demorando a passar é esse. Eu ligo a TV e tem alguém fazendo uma comida “cheia de afeto”. Abro uma rede social e lá está uma comida chamada “de vó” e apresentada pela afetividade. Se vou escolher um restaurante, esse conceito está por toda parte, do cardápio à explicação do atendente. Mas como é que viemos parar nisso?
Primeiro: não há como negar a intrínseca relação entre o humano, a comida e os afetos. Aliás, para nós, brasileiros, a comida pode até ultrapassar essa fronteira e chegar na sexualização. Mas esse é assunto para um outro dia. Uma gaveta para abrirmos outra hora.
Em segundo lugar, eu poderia mencionar a história de um conceito parecido com esse: comfort food. Um fenômeno norte-americano que começou a aparecer em meios de comunicação na segunda metade do século 20. Até onde tenho notícia, em 1966 já tinha jornal descrevendo esse conceito pela via da nostalgia.
No Brasil, ousaria dizer: esse fenômeno pertence muito mais ao século 21 do que ao 20. No fim do século passado, estávamos com outros valores vigentes. A comida afetiva caminha nesse início de século ao lado do conceito de comida artesanal, que já situamos anteriormente.
Há algo particular na dita comida afetiva: as boas memórias. Aquelas que a gente escolhe lembrar, cuida bem, emoldura, lustra e põe no centro da mesa. Mas há memórias evitadas. Afetos que preferimos deixar de lado. Mas esses quase nunca são mencionados na comida.
Pensar em comida afetiva envolve boas memórias, não afetos no sentido amplo. Às vezes, fico com a impressão de que o mundo anda num oba-oba sem fim com a comida, esquecendo que ela é política, economia, disputa e tantos outros signos. A comida não é a fetichização de seus afetos. Sei que ando insistindo nessa pauta, mas comida requer reflexão. Não é só colocar para dentro.
Será que essa tal comida afetiva é mesmo real ou só uma estratégia de marketing? Se pensamos que nossas memórias de comida são construídas em esfera coletiva e também com expressões individuais, fica difícil pressupor que uma determinada comida seria compreendida como confortável, nostálgica ou remeter a boas memórias para muitas pessoas.
Mas a crítica não para aí. Algumas pessoas afirmam: quando a gastronomia apela para essa memória afetiva, vira estereótipo. E será que não estamos supervalorizando uma ideia pessoal demais para ser adaptada a um prato servido para cinquenta, cem pessoas em um único dia? Como se uma lembrança boa coubesse em qualquer mesa, em qualquer barriga.
Inegavelmente, falar de comida afetiva também nos incentiva a falar de um repertório de cozinha doméstica. Esse talvez seja um aspecto importante para nos determos.