A gravura 'La paticierre' (A pasteleira, em português), do fim do século 17, reforça a ideia de que às mulheres era reservada apenas a apreciação das sobremesas -  (crédito: Nicolas de L’Armessin/Reprodução)

A gravura 'La paticierre' (A pasteleira, em português), do fim do século 17, reforça a ideia de que às mulheres era reservada apenas a apreciação das sobremesas

crédito: Nicolas de L’Armessin/Reprodução


Vira e mexe, quando estou em um restaurante com meu companheiro, é comum que ele peça sobremesa, enquanto eu não. E quando a sobremesa chega, adivinhe? Ela é colocada à minha frente. Esse gesto aparentemente banal revela uma prática carregada de estereótipos de gênero. A comida, afinal, transborda signos que reafirmam papéis sociais e reforçam expectativas culturais.

 


Para pensar sobre alimentação e gênero, a obra de Florent Quellier abre um caminho interessante. Ele investiga como a sociedade ocidental, especialmente a francesa, construiu uma visão dicotômica entre homens e mulheres no prazer gastronômico, limitando a mulher a um papel submisso. Desde a Idade Média, discursos clericais criticavam a “gula indisciplinada” das mulheres que consumiam confeitos e frutas cristalizadas, vistos como hábitos ruins e financeiramente perigosos para seus maridos.


No século 18, aparecem inscrições médicas sobre a aceitação do açúcar na dieta, dedicando essa defesa às mulheres e perpetuando a ideia do doce como “inclinação natural” do “sexo frágil”. Essa relação entre mulher e açúcar também apareceu na literatura anticlerical, que ridicularizava monges com gostos doces, atribuindo-lhes um lado afeminado.

 


Até o século 20, revistas femininas incentivavam gestantes a consumir açúcares para “garantir” o nascimento de meninas, reafirmando a associação entre doce e feminilidade. No ambiente doméstico, especialmente entre as classes altas, mulheres preparavam compotas e iguarias açucaradas para ocasiões especiais, reforçando o papel de “dona de casa exemplar”. Esses preparos eram vistos como bonitos e delicados, mas sem a sofisticação da alta gastronomia.


Autores franceses do século 17 incentivavam as mulheres a instruírem empregadas sobre a qualidade das sobremesas, mantendo o controle sobre os doces, mas sem interferir nos pratos principais.


Enquanto isso, a gastronomia associada à técnica refinada permanecia um espaço predominantemente masculino. No século 19, mulheres foram excluídas dos banquetes formais e relegadas aos “enfeites” das mesas e às sobremesas decorativas. Grimod de la Reynière e Brillat-Savarin, grandes nomes da literatura gastronômica francesa, viam as mulheres como incapazes de apreciar pratos complexos, reservando-lhes apenas a apreciação das sobremesas. Essas guloseimas, preferidas por “crianças e mulheres bonitas”, contrastavam com o gosto “maduro” dos homens por carnes e vinhos.

 


A estrutura dos restaurantes de alta gastronomia, influenciada pela corte, também refletia essa divisão, com a maioria dos funcionários sendo homens. Quando as mulheres começaram a atuar como chefs, foram chamadas de “mães”, reforçando um papel de cuidado e não de inovação.


Essa construção social da “gula feminina” versus o “gosto masculino”, ao longo dos séculos, revelou-se não apenas uma questão de preferências alimentares, mas de controle cultural e simbólico, onde o doce, o ornamento e o frívolo foram associados ao feminino e o complexo, o sério e o criativo, ao masculino.

 

 

Abandonar essa herança implica desassociar o gosto dos gêneros e abrir espaço para um olhar que respeita o prazer e a expressão individual sem limitações culturais. Está na hora de deixarmos esse passado passar, permitindo que o campo da alimentação reflita a diversidade de vozes e experiências sem as amarras dos estereótipos.