O ministro tem o direito e o dever de se explicar -  (crédito: Flickr)

O ministro tem o direito e o dever de se explicar

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Quem lê os meus textos já está acostumado com a minha introdução óbvia: tudo é sempre mais complexo do que pode parecer. Hoje não haveria de ser diferente, com o amontoado de notícias sobre possível envolvimento do Ministro da Justiça com pessoas acusadas de compor organizações criminosas.

A primeira coisa a ser feita é a separação entre o Direito e a Política. A diferença é sutil, mas aqui ela é necessária. Quem tem vida pública, sabe que está mais exposto do que eu e você aos holofotes e escândalos públicos. Um fato corriqueiro nas nossas vidas pode ser um tsunami na vida de uma pessoa politicamente exposta.

Sempre foi assim e há inúmeros julgados do STF dizendo que pessoas politicamente expostas têm menos direito à imagem e privacidade. A questão é que isso não significa que essas pessoas não tenham direito à imagem e à privacidade, mas os tem de forma mais restrita porque a sua imagem e privacidade, muitas vezes, estão ligadas ao direito à informação dos cidadãos.

Eis o ponto principal que pretendo abordar aqui: a famigerada ponderação que todo cidadão adulto, com a sanidade razoavelmente em dia e com o mínimo de formação ético-social deveria ter.

A alegação de que haveria componentes de organizações criminosas, traficantes e outros tipos de pessoas, cujas condutas o Estado deve combater, nas dependências do Ministério da Justiça é uma acusação grave. Por sua vez, todos que estão ali, especialmente o titular da pasta, são pessoas politicamente expostas e, por isso, devem mais explicações públicas do que o contrário.

Ou seja, divulgar que existe este fato a esclarecer não pode levar a autoridade a buscar calar quem o diz (como o fez o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, em ocasião semelhante), mas vir a público esclarecer os fatos e se colocar à disposição de qualquer autoridade competente para colaborar com os esclarecimentos oficiais. Exatamente por este contexto, não se pode suscitar atuação ilícita dos órgãos de imprensa que noticiam o fato, dado que há evidente interesse público nestas explicações.

Se há uma dúvida sobre algo, então que este algo seja devidamente esclarecido pelos envolvidos. É isso que separa a licitude (ou não ilicitude) de uma conduta da sua legitimidade. Já viu aquele jargão velho de que “não é ilegal, mas é imoral”? Pois é, a intenção é bater exatamente na disjunção entre legalidade e legitimidade.

A autoridade pública se baseia no poder que a lei lhe confere, mas também na legitimidade do cargo – que vai além da legalidade. É preciso que a população e as demais autoridades do país vejam naquele agente determinado uma postura condizente com o cargo que ocupa. Daí porque simplesmente mandar “calar a boca” ou encerrar entrevistas não é um bom caminho para a legitimidade como a gente cansa de ver por aí.

Continuando esta linha para mostrar que tudo deveria ser um bocado mais complicado do que se coloca, temos a figura do cidadão que é bombardeado com essas informações. As pessoas, em geral, têm interesse em saber o que ocorre no país e, se forem um pouco mais atentas, querem também saber o que fazem as pessoas que gastam os tributos que recolhemos.

Logo, quando se depara com a afirmação de que existe uma acusação como essa contra um agente do alto escalão do governo, é uma obviedade se esperar que as pessoas se inquietem e queiram saber do que se trata. Até porque, confirmada a informação, sem dúvida alguma a legitimidade daquela autoridade será diretamente afetada e a sua confiança pública sofrerá (legitimamente) forte abalo.

Onde entra o problema: a forma como essa informação tem chegado nas pessoas. Há muito tempo os novos modelos de comunicação oriundos do amplo desenvolvimento das tecnologias da informação têm impactado a opinião pública. Eu insisto em dizer que não sou tão velho assim, mas me lembro com bastante clareza da época em que os únicos meios de informação disponíveis para o cidadão eram as empresas licenciadas de TV (que eram poucas, já que inexistia sistema de TV paga), as empresas de rádio e os jornais escritos.

Ou seja, havia relativamente poucas fontes de informação e, neste contexto, na tentativa de criticar o modelo editorial de um veículo ou outro, questionava-se se a informação difundida era a “opinião pública” ou a “opinião publicada”. O trocadilho tinha uma premissa interessante (que à época era óbvia, mas hoje tem outro peso): antes de uma informação ser divulgada, havia um filtro editorial que permitia colocar a situação tal como era possível colocar, de modo a preservar a linha editorial (não sejamos ingênuos, todo mundo tem lado nesta vida) e a veracidade da informação.

Em um extremo oposto está o mar da internet! De repente, alguém (sempre tem um) decidiu testar o que aconteceria se uma informação fosse distorcida para gerar um impacto determinado. Pronto... abriu-se a caixa de pandora.

Steve Bannon era o responsável pela Cambridge Analytica e literalmente fabricou uma opinião de que a Inglaterra estava massivamente de acordo de que seria a melhor decisão aderir ao Brexit (movimento de saída da União Europeia). A informação era deliberadamente mentirosa (o que ficou provado depois) e foi difundida de forma direcionada para um público específico e que ainda não tinha opinião totalmente formada sobre isso.

Resultado: ao contrário das pesquisas reais, o Brexit foi aprovado porque muita gente “aderiu” ao movimento em massa em favor do Brexit – que na verdade não existia.

O que as pessoas que pensam o direito (sejam por formação ou por bom senso) devem aprender com isso? Primeiro: as pessoas acreditam. É preciso dizer algo desconcertante, mas verdadeiro: as pessoas, em massa, acreditam em qualquer coisa que se coloque diante delas de forma acrítica. E isso é uma ferramenta poderosíssima nas mãos de pessoas mal intencionadas.

Em segundo lugar: a legitimidade de qualquer decisão pública pode ser afetada por uma mega corporação de tecnologia ou por um pirralho de 14 anos, sem muitas tarefas a cumprir e uma licença (paga ou crackeada) do photoshop. Por último: o direito ainda não possui ferramentas e nem cultura para lidar com esta realidade e precisamos ter humildade para assumir isso.

E exatamente por este contexto que o cenário é catastrófico: não existe o menor controle sobre o que se produz, se publica e se divulga nas plataformas públicas de comunicação, como as redes sociais. Todo mundo faz o que quer, como quer e sem limites.

Há estudos, inclusive, indicando que as pessoas tendem a ganhar uma coragem que normalmente não têm na frente de uma tela. A pessoa que não teria coragem de chegar na frente do Ministro da Justiça (ou na minha frente ou na sua) e fazer uma afirmação que ela sabe ser falsa, faz exatamente isso com a maior tranquilidade diante do celular e posta nas redes.

As redes, com o seu efeito multiplicador, fazem com que esta informação seja reproduzida em escala geométrica até aparecer em tantos lugares diferentes ao mesmo tempo que seja impossível duvidar que é verdade. O momento é ruim e nós, como povo, não temos a menor educação digital para lidar com isso.

E não se engane achando que eu estou falando dos tios e das tias do zap! A ignorância tecnológica é generalizada em todas as gerações e classes sociais. A inabilidade de lidar com todo esse ferramental tecnológico disponível nos deixa completamente vulneráveis, tornando-nos, por vezes, ingênuos multiplicadores (e legitimadores) de interesses escusos alheios.

Nunca foi tão bem ajustado o conceito de massa de manobra.

O último item deste cenário desolador é a análise da postura das demais autoridades públicas sobre o tema. Exatamente por serem politicamente expostas, o que mais se esperaria de uma autoridade é ponderação e lucidez.

Diante de uma situação como esta, o que eu gostaria de ouvir de um parlamentar da oposição? Algo do tipo: “recebi com preocupação a notícia de que existe a denúncia de contato do Ministro da Justiça com pessoas que ele, como titular da pasta da Justiça, deveria combater. Espero, com a maior prontidão, as devidas explicações do Ministro para que os fatos sejam esclarecidos. Se provado o fato, eu como membro da oposição, envidarei todos os meus esforços para que o Ministro tenha a devida responsabilização pelo fato, inclusive com a perda do posto, que não está à altura de quem pratica condutas como as alegadas. Após as explicações do Ministro voltarei a me manifestar”.

Olha que legal! Passar pano? Jamais! Afinal, a oposição serve para lembrar ao governo da vez, dia sim dia também, que não há um passo que se dê sem ser visto. É desta forma que a oposição mostra o seu valor democrático. Na verdade, não existe democracia sem oposição, de modo que a existência de um “chato” com uma lupa na mão vigiando o governo é condição necessária para a existência de um ambiente democrático. Eu gostaria muito de ver os parlamentares da oposição se manifestando assim.

Entretanto, o que a gente viu? Uma enxurrada de prints e postagens montadas com títulos garrafais do tipo: “Dino narcotraficante!”. É pequeno, feio, antijurídico, infantil, desarrazoado e atenta contra si próprio.

Essas mesmas autoridades amanhã podem ser o alvo de acusações desta natureza (como já ocorreu) e reclamarão, aos quatro ventos, que estão sendo alvo de perseguições e mentiras. E muito pior do que isso, essas autoridades pautam e legitimam a conduta de inúmeras pessoas que consomem o conteúdo que essas autoridades produzem.

Ou seja, as pessoas que deveriam ser a foz forte da razão e da oposição se tornam agentes do caos (inclusive contra si próprias!), o que em nada contribui para o nosso já combalido quadro de distúrbio informacional e abandono da verdade.


O final desta história não sabemos, mas fatalmente será muito ruim se não começarmos a desconfiar do que lemos na internet, passarmos a nos educar sobre as questões informacionais e nos habituar a lidar com múltiplas fontes de informação para formar opinião própria. O cenário atual é perfeito para os canalhas e um desastre para quem tem respeito pelos limites, o que faz com que, para variar, todo o prejuízo se volte contra nós.