O ENEM 2023 foi o primeiro exame neste terceiro mandato do Lula e havia, por motivos óbvios, expectativa sobre o formato da prova, já que o governo Bolsonaro fazia questão de frisar que a “linha ideológica” da prova era filtrada pelo MEC. Pois bem, como não haveria de ser diferente, a prova veio com bons exemplos de como posições governamentais afetam diretamente políticas pública e levam ao debate.

Parêntesis 1 (prepara que hoje são muitos): depois vem maluco me dizer que educação e outras áreas devem ser neutras. Meu consagrado, neutro é sabão! Educação é política pública de Estado e reflete a visão do governo da vez. Logo, vamos parar de tapar o sol com a peneira e aprender a lidar com isso de forma mais adulta.

Voltando: de todas as pseudo polêmicas levantadas no pós prova, uma que me chamou muito a atenção foi a irritabilidade dos representantes do agro com a forma como foram tratados como “malvadões” no ENEM. A “lógica do agro” foi vinculada à subordinação das pessoas à “lógica do mercado”.

Aí o pessoal ficou bravo e, inclusive, há iniciativas para anular a questão, sob o argumento de que há uma deturpação do agro e que retratá-lo de “forma negativa” seria indevido.



Parêntesis 2: é muita chatice essa implicância com uma prova! Além disso, é dá muito poder para um professor. Como diz uma comadre, que é professora, o professor em sala de aula mal consegue fazer com que os alunos fiquem calados. Estão superestimando a profissão! Aprendi com muitos professores comunistas declarados e aprendi com muitos professores extremamente conservadores e nenhum deles conseguiu me impor um jeito de pensar. É preciso um pouco mais de flexibilidade para conviver com a diferença e a escola tem, também, esse papel. Comunistas e conservadores, disputem a doutrinação das criancinhas antes que o influencer formado no TikTok o faça!

Voltando: pois bem, como tudo é bem mais complexo do que pode parecer em um primeiro momento, é preciso colocar algumas ideias no lugar. A primeira delas é o fato de que os representantes do agronegócio brasileiro deveriam ficar irritadíssimos com esse negócio de serem colocados no lado capitalista da história.

Ouso dizer que poucos setores no Brasil são mais comunistas, marxistas-leninistas, do que o agronegócio. E se você achou esquisito, eu posso provar.

Antes disso, vamos aos conceitos importantes: capitalismo, de forma muito grosseira e rudimentar, é a ideia de que os mercados devem ser regulados pelas leis de mercado, sem interferência governamental, de forma a privilegiar a livre concorrência como mecanismo de desenvolvimento das relações jurídicas entre empresas, consumidores, fornecedores e trabalhadores. Ao contrário do que se pensa, capitalismo não está essencialmente ligado ao dinheiro, mas à forma como a riqueza é produzida, tratando de retirar o Estado dos ambientes de criação de riqueza e atribuindo à iniciativa privada a livre pactuação das regras de negociação, assumindo como positivo que os melhores competidores se mantenham e cresçam e os piores sucumbam, cabendo ao Estado garantir um ambiente de competição na maior medida possível.

Por outro lado, o marxismo faz o movimento oposto e planifica a economia, trazendo as regras do jogo de mercado para um governo centralizado, onde as decisões serão tomadas de acordo com os critérios estabelecidos pela autoridade pública. Não há liberdade para contratar, mas possibilidade de realização negocial de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo Estado, que determinará, previamente, quem serão os ganhadores do jogo de acordo com os interesses do governo, cabendo ao Estado controlar o ambiente de desenvolvimento dos negócios.

Parêntesis 3: antes que as lamúrias filosóficas comecem, é um recorte para o que me interessa. Até porque não tenho a menor intenção de resumir séculos de discussões políticas, jurídicas e filosóficas em dois parágrafos.

Voltando: assumindo essa premissa, já é possível perceber que há algo de podre no reino da nossa Dinamarca Tupiniquim. Isto porque o Estado brasileiro nunca foi muito bom em deixar com que as pessoas competissem livremente no mercado.

Entretanto, como bons brasileiros que somos, essa dificuldade em deixar competir não deriva essencialmente de um espírito capitalista de liberdade, mas do uso excessivo do poder para beneficiar os seus. Se você se dedicou razoavelmente às aulas de História no sexto ano, vai se lembrar que Pero Vaz de Caminha encerra sua famosa carta ao Rei pedindo um emprego (e, definitivamente, o pedido não é baseado no currículo do candidato).

E depois, as capitanias foram escolhidas e entregues a pessoas determinadas (cujos sobrenomes se repetem com uma constância histórica curiosíssima); os movimentos de expansão industrial e rural se deram por e para núcleos determinados; o incentivo à indústria e mercado mineral tinha sobrenome; a indústria automobilística é aconchegada no Planalto há 40 anos sempre ao argumento de que precisa de amparo para se desenvolver, como um bom quarentão com síndrome de Peter Pan; temos os campões nacionais, que inclui gente fraudadora e empresa quebrada, mas tudo com suporte do Estado.

Pois bem, a lista é extensa! Mas tem um detalhe importante: o agro é, de longe, o campeão de todos! O agronegócio brasileiro pode ser retratado como um playboyzinho mimado, acostumado a gastar o dinheiro do pai, bater o carro bêbado na balada e ficar revoltadíssimo e de saco cheio com o aborrecimento de ter que explicar na delegacia o que aconteceu, apontando o dedo na cara do delegado e dizendo: “você sabe com quem está falando”?

E eu posso provar! Sabe como funciona, em tese, o mercado? É assim: se você quiser abrir uma empresa de qualquer coisa (pensa aí e seja criativo), vai ser preciso investir (a palavrinha mágica bonitinha que significa pagar para trabalhar na expectativa de que em algum momento vai ter lucro). Neste momento em que chega o investimento para mudar a vida das pessoas, gerar riqueza, criar empregos e movimento o mercado, o Estado está essencialmente preocupado se você está só começando ou não está lucrando como poderia? Claro que não.

Portinha para cima e cliente para dentro, vem o “sócio majoritário” com IOF (Imposto sobre operações financeiras), II (Imposto sobre importação), IPI (Imposto sobre produtos industrializados), IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica), Cofins (Contribuição de financiamento da seguridade social), PIS/Pasep (Programa de Integração Social), CSLL (Contribuição social sobre lucro líquido), ICMS (Impostos sobre circulação de mercadorias e serviços), IPVA (Imposto sobre a propriedade de motores automotores), IPTU (Imposto sobre propriedade territorial urbana), ISS (Imposto sobre serviços) e ITBI (Imposto de transmissão de bens imóveis). Isso tudo incide cumulativamente ou alternativamente, a depender do negócio e eu não inclui aqui as taxas.

Pois bem! E o agro? Ah... o agro é o playboy do mercado. Confere comigo:

1. Art. 8º da Lei n° 10.925/2004: crédito presumido (para abater o tributo) do PIS/Cofins para a agricultura e agroindústria;

2. Art. 1º, II, da Lei 10.925/04: alíquota zero (ou seja, tributo zero) para insumos da agricultura e agroindústria;

3. Art. 8º, § 12, e art. 28 da Lei 10.865/04: alíquota zero (ou seja, tributo zero) para insumos da agricultura e agroindústria;

4. Art. 25. da Lei 11.727/08: alíquota zero (ou seja, tributo zero) para insumos da agricultura e agroindústria;

5. Arts. 1º ao 4º da Lei 12.859/13: crédito presumido (para abater o tributo) do PIS/Cofins para a produção de álcool;

6. Arts. 1º ao 8º da Lei 11.116/05: alíquota zero (ou seja, tributo zero), redução de alíquota e crédito presumido (para abater o tributo) para a produção de biodiesel, incluindo a produção da sua matéria-prima;

7. Art. 3º da Lei 9.532/97: isenção do imposto de renda pessoa jurídica para projeto da agricultura e agroindústria na área da SUDAM e da SUDENE;

8. Art. 69 da Lei 12.715/12: redução de 75% da alíquota do imposto de renda pessoa jurídica para os setores prioritários (adivinha???) instalados nas áreas da SUDAM e SUDENE até dezembro de 2018;

9. Art. 10 da Lei 12.995/14: estende o prazo acima para 10 anos a partir do início da sua fruição;

10. Art. 1º da Lei 13.799/2019: acaba com o prazo de 10 anos acima e estende o benefício para todo mundo considerado prioritário (precisa repetir??) que se instalar até dezembro de 2023;

11. Art 25 da Lei nº 8.870/94: alíquota especial para a agroindústria e produção rural por pessoa jurídica relativa à Contribuição Previdenciária;

12. Art. 25 da Lei n° 13.606/2018: redução da alíquota da Contribuição destinada à Seguridade Social Rural;

13. Art. 2º da Lei n° 13.606/2018 (sim, a mesma lei): possibilidade de renegociação dos débitos tributários do produtor rural com abatimento de 100% dos juros e 100% das multas mediante pagamento de entrada de 2,5% do valor da dívida e parcelamento do restante em até 176 parcelas;

14. Art. 5º e 6º da Lei 9.138/95: institui o crédito rural, estabelece a taxa máxima de juros para o crédito rural de 3%, com capitalização anual, e autoriza o tesouro a emitir R$ 7 bilhões de reais para garantia de refinanciamento de dívidas e alongamento das operações;

15. Linha de financiamento exclusiva no BNDES com valor de até R$ 150.000.000,00, com pagamento em até 12 anos, taxa do BNDES máxima de 1,25% a.a. (isso significa “ao ano”) e taxa de risco de crédito de até 2,6% a.a.

Já está bom para você? Porque tem mais! E aí eu te pergunto: tem gente mais juridicamente mimada do que o agro neste país? Você conhece um empresário que tem esta lista de benefícios estatais? Lembrando que eu não consegui compilar tudo e foquei nos benefícios fiscais. Se um empresário “comum” for ao banco, existe alguma chance de ele conseguir um empréstimo com taxa de 2,6% ao ano? Existe mais alguém neste país “protegido” contra juro bancário superior a 3% e com garantia de capitalização anual (e não mensal como os “mortais”)?

Pergunto mais: que raio de capitalismo é esse que tem toda a estrutura do Estado ao seu dispor para lhe garantir todo e qualquer tipo de benefício possível e imaginável? Se o MEC/INEP têm uma prova, o agro tem a lei ao seu lado e faz uso do Estado despudoradamente para atender aos seus interesses.

Parêntesis 4: obviamente que o discurso é bonitinho né... “somos o motor do país”, “se você comeu hoje é por causa do agro” e outras baboseiras para justificar todas as benesses acima que passam longe do debate público.

Voltando: e o capitalismo malvadão, onde entra? Entra na prática do pior capitalismo que existe, que é aquele capitalismo de quem é “amigo do rei”. É neste capitalismo que surge a lógica do “aos amigos tudo e aos inimigos a lei”, de modo que os amigos do rei podem se dar ao luxo exercer o “capitalismo sem risco” (que seria da essência do capitalismo). E sem risco porque o lucro entra no caixa e o prejuízo vai para os cofres do Estado, que obviamente transfere esse abacaxi para mim e para você.

Ou seja, se tem uma coisa que o agro não pode reclamar é da presença do Estado na sua vida, pois, de regra, o Estado chega para deixar a cama feita e quentinha. E partindo desta premissa, o agro não é “legal” mesmo. E aqui que entra o segundo erro desta discussão toda.

O agro merece crítica não pelo que disse o MEC/Inep, ingenuamente colocando o agro ao lado da “lógica do mercado” e da “lógica do capital”, mas pelo oposto! O agro deve ser criticado por colocar o Estado ao seu serviço independente da sua ineficiência e em franca e contínua campanha contra o desenvolvimento do país, pois sua posição de produtor de commodities primárias é confortável para si mesmo.

País industrializado e desenvolvido, com parque tecnológico implantado, mão de obra qualificada e urbanizada, vai crescer com bens e serviços de primeira linha. Neste cenário, você acha que a lista de leis acima iria se manter? Pois é, talvez a “locomotiva do país” não está pensando no país, mas em manter um trilho somente para si.

O maior exemplo disso é o esforço que se faz contra a implementação do dispositivo mais capitalista que tem na Constituição da República, previsto no art. 184: a reforma agrária. Se você se espantou, é porque a propaganda funcionou.

A reforma agrária é um conceito constituído na formação dos Estados capitalistas europeus e tinha o objetivo de garantir a produção de cada pedaço de terra existente. Terra ociosa é menos dinheiro produzindo e menos capitalismo. Por isso, foram feitos amplos programas de reforma agrária para garantir que cada canto do continente fosse um efetivo produtor de riqueza (independente da natureza da riqueza produzida).

Por sua vez, a propriedade privada ociosa (quem se dispuser a ler a Constituição vai ver que é essa que está sujeita à reforma e não qualquer propriedade) só cria um “clube do bolinha” de quem será capaz de decidir o que vai ser produzido, quanto será produzido e quando. Daí fica mais simples perceber a capacidade de pressão e o poder de criação de leis “altruisticamente” benéficas que o agro tem.

Pois é, o mais curioso de tudo isso é que o MST (imagino que sem ter muita ideia disso) é o grupo que, do seu jeito torto e em curiosas cores vermelhas, quer implantar o capitalismo no Brasil e o agro não deixa. Mas o problema do país é a questão do ENEM...

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