Uma policial civil foi brutalmente assassinada esta semana por uma pessoa que, segundo consta, “se sentiu ameaçada”. A policial estava devidamente identificada (o que nem é prática da polícia civil em atividade de investigação) e seu erro foi achar que estava nos Jardins e por isso protegida pelos altos muros de um dos metros quadrados mais caros de SP.
Não se pode negar que ela fez o que todos nós fazemos intuitivamente: na periferia, excepcionalmente na que não é a nossa, ficamos com medo de tudo e de todos. Nas áreas nobres, relaxamos e nos sentimos seguros.
Isso é fruto da política do medo que a todos influencia e leva a acreditar que diante de uma mansão não há perigo para a vida de quem quer que ali esteja. Ledo engano que serve de alerta para todos os profissionais de segurança pública.
Parêntesis 1: que o digam os policiais federais recebidos a tiros e granadas na casa de Roberto Jefferson ano passado.
Voltando: De toda forma, esse fato serve para voltarmos a uma velha e, hoje, ainda mais tormentosa questão, relativa ao armamento ou desarmamento da população. Antes de mais nada, alguns mitos precisam ser desfeitos.
Primeiro mito: armar a população não significa armar a população, mas uma pequena parcela da população. Hoje o decreto assinado pelo “comunista” Lula autoriza a comercialização de armas .22LR ou Short, .32S&W, .380ACP e .38SPL.
Meu consagrado, a .22 mais conhecida e comercializada é uma Smith & Wesson que custa a pechincha de R$ 15.000,00. Se você for mais humilde e se contentar com uma Thunder, sai entre R$ 6.000,00 e R$ 7.000,00. As .22 da Taurus e da Glock não saem por menos de R$ 7.000,00. Esses preços valem para revólveres e pistolas. A escolha é sua.
Se você for uma pessoa mais clássica e quiser se aventurar por um .38 SPL, a diferença será apenas de estilo. O menor e mais simples dos modelos não sai por menos de R$ 5.000,00.
Agora se você for uma pessoa mais “moderninha” e quiser bancar um .380 já fica um pouquinho mais salgado. A peça de entrada da Smith & Wesson vai por uns R$ 11.000,00. A Glock tem modelo de R$ 9.000,00. A Taurus mantém o padrão entre R$ 6.000,00 e R$ 8.000,00.
Detalhe: antes de comprar a arma, tem que passar por um processo para aquisição que envolve treinamento, psicotécnico, despachante, taxas para o Estado e etc. a brincadeira sai por volta de R$ 10.000,00 fácil.
Agora volta comigo para o IPEA e vamos lembrar que os 40% mais pobres da população brasileira recebem em média R$ 253 por mês per capita (você não leu errado!). Os 50% intermediários recebem em média R$ 1.530,00 por mês per capita (sim, pode concluir que já chegamos em 90% da população e ainda não deu R$ 2.000,00).
Em terras tupiniquins, 10% em média R$ 7.900,00 por mês per capita. E acredite você ou não, a partir deste quadrado, para fins econômicos, já estamos falando da classe rica.
Dentro desses 10% dos ricos, 5% abocanhava R$ 10.000,00 per capita por mês e 1% surfavam em R$ 28.650,00 por mês per capta. As pessoas têm dificuldade de assimilar (principalmente quem vive nas capitais e grandes cidades), mas a população brasileira está muito mais próxima da miséria do que o inverso.
Deu para perceber que mesmo entre aqueles que estão nos 10% não é tão simples assim comprar uma arma. Vai gastar aí um parcelamento no cartão. Até porque tem a concorrência do financiamento do apartamento e do Renegade.
Passados os números óbvios, mas que nem todo mundo sabe, tem outro mito que precisa ser colocado na mesa: arma não garante segurança.
Antes de você começar com toda aquela enxurrada de argumentos sobre “o bandido estar armado” e “no dia que a presa esá armada o predador dorme com fome”, observa comigo um elemento também um pouco óbvio.
Arma é um equipamento. Como todo equipamento, precisa de conhecimento e treinamento para usar. Pensa em uma pessoa mirradinha que você conhece. Baixinha, magricela e meio desengonçada. Pois é. Agora pensa essa pessoa com um Fuzil de Assalto AK47, uma das armas de guerra mais poderosas já testadas em combate.
Pareceu uma cena incompatível? Se te pareceu, você está enganado. Com o devido treinamento, o seu amigo ou sua amiga mirradinha manobra o Kalashnikov de calibre 7,62 com destreza letal. Ou seja, não precisa ser o Rambo para usar uma arma, mas precisa treinamento.
Parêntesis 2: usar o Rambo como referência é uma evidência de que você já entrou no grupo de risco. Vacine-se contra a gripe no início do ano por favor e me lembrem de me vacinar também.
Voltando: o problema é que não temos treinamento. Uma pesquisa realizada por Tânia Maria Pinc, para a sua tese de doutorado na USP, constatou que as forças policiais (que vivem disso) não conseguem implementar na prática os treinamentos que recebem. Na rua, na hora do embate e da abordagem, na imensa maioria dos casos eles fazem tudo ao contrário, expondo a si mesmos, aos companheiros e aos civis a perigo de morte evitável.
Ou seja, o governo gasta milhões em treinamento policial e na hora que a corda arrebenta é cada um por si e salve-se quem puder.
Você pode pensar: os policiais são ruins? E eu te respondo: claro que não! A imensa maioria é comprometida e dedicada ao trabalho. A questão é que eles são seres humanos. E sabemos que é muito bonito falar de segurança dentro de confortáveis gabinetes e púlpitos de palestras.
Na hora que o barulho do tiro passa zunindo no ouvido, o instinto de sobrevivência manda o treinamento às favas. E qualquer pessoa que estiver neste lugar vai fazer a mesma coisa porque esse negócio de dar a vida pela sociedade é bonito no juramento da formatura, mas a família em casa não concorda muito com isso, não.
E daí eu te pergunto: se o policial, que é um profissional da segurança pública, não é capaz de controlar a técnica no momento do limite do estresse, imagina o CAC voltando estressadíssimo do escritório em um trânsito caótico? Imagina aquele senhor que treina em um clube de tiro com abafadores de ouvido quinzenalmente na hora em que um babaca qualquer (existem muitos!) começar uma discussão inútil por causa da vaga de estacionamento do condomínio?
Não tem a menor chance de dar certo, pois nesta hora o estresse sobe e a capacidade de raciocínio desaparece. O resultado é o que vimos no noticiário, onde o “senhorzinho” se achou em um típico bangue bangue e saiu atirando sem nem perguntar do que se tratava.
O último mito é: não adianta vir falar que o Estado vai fiscalizar porque não vai. O Estado brasileiro é péssimo nisso e temos provas. Temos instituições de ensino superior devidamente fiscalizadas e avaliadas que entregam diplomas universitários a analfabetos funcionais; temos inúmeros Estados que entregam carteiras de habilitação para pessoas que não sabem dirigir; temos inúmeras mineradoras autorizadas que fazem o que fazem (não precisa explicar).
Os exemplos são infinitos... por que motivo deveríamos acreditar que o Estado será apto a selecionar aqueles (dentre os suficientemente afortunados) aptos a portarem armas de fogo? Não há nada que possa levar a esta conclusão.
Por fim, não é um mito, mas uma constatação que precisamos fazer e nos recusamos: o brasileiro em geral não está minimamente preparado para viver em uma sociedade amplamente armada. Precisamos admitir que somos um povo violento, que coloca a força bruta como a primeira solução para uma enormidade de situações e que acredita fiel e explicitamente na violência como forma de solução de controvérsias.
Somos também muito pouco civilizados. Quem mora na Zona Sul (onde vivem as pessoas que têm condição financeira para comprar armas) sabe que as filas de supermercado são impossíveis, pois as pessoas furam as filas. As vagas preferenciais não são respeitadas. No shopping onde desfilam carros importados, as discussões são constantes simplesmente porque a roda aro 20 da Porsche ficou em cima da linha da vaga onde estava a Mercedes.
Nestes mesmos locais, joga-se lixo no chão sem a menor cerimônia e agride-se o funcionário da limpeza somente porque ele é um serviçal. Nos lares das afortunadas famílias brasileiras, mulheres são brutalmente espancadas todos os dias, tudo devidamente coberto pelas mais caras grifes de maquiagem parisiense, e subordinados são assediados e/ou submetidos a condições análogas às de escravos para garantir que tudo esteja com o refinamento digno de um bom sobrenome.
Eu seria a favor do amplo porte de arma para a população se não tivéssemos todos estes percalços que citei acima. Como convivemos guturalmente com todos esses “percalços”, defender isso é defender a morte de policiais, defender a morte de gente inocente em razão do pensamento maníaco de gente escrota e acreditar que nos colocar em um fogo cruzado sem grana para carro blindado vai nos tornar melhores.
Pode ser que sem tentar a gente nunca aprenda como sociedade a conviver assim, mas eu, que estou muito longe de ser um cidadão de bem, definitivamente não quero ser responsável por cada enterro de gente inocente para além dos que já temos que suportar todos os dias. É uma questão de escolha que tende a ficar sensivelmente mais difícil quando está na hora de enterrar um dos seus.