Esta semana o noticiário local deu conta de uma batida com um carro de luxo que colidiu a impressionantes 250 km/h em plena Avenida Barão Homem de Melo, na cidade de Belo Horizonte. Para quem não é de BH, entenda que isso ocorreu praticamente no centro da cidade, o que já vai dar uma boa ideia do que isso significa.
Este evento repercutiu muito, acredito eu que por dois motivos preponderantes: a velocidade que o carro estava em uma avenida cujo limite de velocidade é de 60 km/h e o fato de que se tratava de um carro de luxo. Independentemente disso, algumas circunstâncias deste caso me chamaram a atenção e, se não chamaram a sua, eu quero fazer isso agora.
Para contextualizar as minhas reflexões, algumas informações prévias são necessárias. Primeiramente, o motorista do veículo, aparentemente, estava alcoolizado (não tenho como ter certeza). Além disso, ele não teve ferimentos graves, mas o passageiro morreu no local.
Importa para mim também o fato de que o motorista não tinha habilitação (é o que o noticiário deu conta, a partir das informações policiais) porque perdeu a CNH ainda na fase de permissão para dirigir (o primeiro ano de “carteira provisória). Sem carteira, o motorista já tinha sido pego dirigindo pelo menos duas vezes, foi o que a polícia deu conta nos seus registros.
Por fim, e de importante remate, o motorista foi preso logo depois de liberado do hospital.
Pois bem, guarda estas informações e vem comigo em uma pequena volta, mas que vai ser importante para refletir.
Anos atrás, num momento em que eu nutria sincera expectativa de passar um tempo na Europa, a primeira coisa que fui pesquisar era como obter a carteira de habilitação internacional. Afinal, eu não poderia perder a oportunidade de dirigir em uma autobhan (que são aquelas estradas sem limite de velocidade).
Eu sou absolutamente fascinado por qualquer coisa que tenha rodas. Basta mostrar algo sobre rodas (de um skate de dedo a um off-road de mineração) e você terá toda a minha atenção. Daí já deu para entender o contexto. Mas o que me chamou atenção neste processo: os contínuos alertas.
Em todo local que você vai pesquisar sobre habilitação, locação de veículos e tudo que gira em torno desta temática, há sucessivos alertas sobre a necessidade de se respeitar as leis de trânsito – especialmente os limites de velocidade. Fiquei intrigado com essa insistência e fui buscar entender (afinal, onde tem placa tem história).
Não foi difícil encontrar. A legislação administrativa de trânsito em alguns países europeus, como França, Espanha e Alemanha, é muito rigorosa. As estradas são monitoradas e os limites de velocidade são medidos continuamente (são limites autos nas vias expressas, é preciso consignar, mas existem).
E se ultrapassar o limite? Então... o pulo do gato está aí. Se ultrapassar, o Estado toma o carro. Você não entendeu errado. Se ultrapassar o limite de velocidade e tiver registro disso, o Estado não vai te multar. O seu carro será confiscado.
E se o carro for de uma locadora de veículos? Ele será confiscado de qualquer maneira e você se vire com a locadora depois para ressarcir o prejuízo (que eu imagino deve ser segurado). Observe bem: não é apreensão. É confisco. Você perde a propriedade do bem.
Para quem não sabe, centenas de veículos utilizados pela Ucrânia da guerra contra a Rússia são doados pela Polônia (um dos países que mais prestam suporte, proporcionalmente, para a Ucrânia e não sem motivo). A Polônia comprou esses carros? Não. São todos confiscados de gente dirigindo embriagada.
Qual a sacada aqui para a gente refletir e pensar a partir da nossa realidade? Alguns Estados europeus (não posso falar por todos) são extremamente rigorosos com o dano potencial de modo a reduzir a concretização do dano real. Até porque, com o dano real, entra em cena os aspectos penais que, em todo país mais desenvolvido e democrático do mundo, são complexos, cheios de restrições e garantias.
E veja que isso não é uma reclamação. É um elogio. Tem que ser assim. Direito penal não serve para resolver problemas cotidianos ou evitáveis, mas para que a sociedade dê alguma resposta para situações de gravidade tal que se podem considerar irreversíveis. Logo, é a última opção a ser pensada.
Ocorre que aqui nas nossas bandas tupiniquins a gente pensa no extremo oposto. Somos extremamente condescendentes com as infrações administrativas, situação em que o Estado teria muito mais força e poder de ação e possibilidade de atuação preventiva. Por outro lado, quando o desastre está posto, corremos a nos “socorrer” do Direito Penal para prender o autor do dano e afirmar que o Estado está agindo para dar uma resposta.
É um desafio à inteligência dos sãos: depois que Inês é morta, o que se há de fazer? Prender o autor para satisfação das nossas consciências de que houve “justiça”, o que é de um descabimento e hipocrisia que não tem tamanho.
Talvez nos falta coragem de tomar medidas sérias e relevantes para evitar que o problema ocorra. Reflita comigo e me retruque (por favor!) se discordar. O que causa mais respeito pela legislação de trânsito:
a) a possibilidade de perda imediata (confisco, perda definitiva) do veículo por um ato administrativo da autoridade, mediante apresentação da prova da infração? Ou
b) a possibilidade de uma punição penal depois de 5 a 10 anos de processo, com potencial de prescrição ou de substituição de pena em circunstâncias favoráveis?
Pois é... escolhemos o caminho mais difícil, mais demorado e que menos impacta no senso de responsabilidade do cidadão. Escolhemos o caminho em que o Estado tem muito menor margem de ação e de impacto imediato nulo de uma perspectiva de prevenção do ilícito.
Ou seja, fazemos tudo ao contrário e depois ficamos chocados com os números de guerra do nosso trânsito. Talvez fosse o momento de pensar nisso não pelo lado da satisfação do ego ou afago de consciência. É preciso também deixar de ter este pensamento medieval, com um fetiche quase sexual por direito penal e punições públicas.
Talvez a partir do momento em que BH, a capital sul-americana dos bares, começar a perder uma frota de veículos por fim de semana de bebedeira, sem acidentes, sem mortes, só por causa da bebedeira mesmo, isso mude. Imagine a cena: seu colega de trabalho chega na segunda de ônibus para trabalhar. O que houve? Bebi e dirigi e agora estou com o financiamento do carro em aberto para pagar e sem o carro.
Seu tio chato que se acha rico porque comprou um Jeep em 60 parcelas chega de Uber no almoço de domingo. A polícia parou, constatou a alcoolemia, fez o registro (imagina aqui o valor da câmera corporal do policial!), colheu testemunha e tomou o carro. Acabou o sonho 4x4 por causa de umas horas no barzinho a um custo de umas poucas centenas de reais.
Agora pensa todas essas cenas de novo só com a multa por dirigir embriagado. A segunda seria uma segunda normal, talvez até com reclamação da multa e algumas risadas. O almoço de domingo seria o mesmo, com a mesma chatice de sempre.
E essa aparente normalidade vai fomentando gatilhos de morte que desaguam em incontáveis corpos recolhidos diariamente para, só assim, nos espantar. E depois a culpa é da lei.