08/01 é o retrato da nossa ignorância até hoje -  (crédito: Ed Alves/CB/ DA press)

08/01 é o retrato da nossa ignorância até hoje

crédito: Ed Alves/CB/ DA press

Essa semana fez um ano do fatídico 08/01/2023. Quem me conhece um pouquinho sabe que não tenho a menor intenção de entrar na improdutiva e chatíssima discussão se é terrorismo ou não, se tem infiltrado ou não e todas essas outras bobagens que inundam a internet e não servem para absolutamente nada.

Minha intenção é propor duas análises que não vejo muito por aí, mas que reputo importantes para a forma como vamos encarar estes fatos hoje e para a posteridade (é preciso lembrar que seremos cobrados a falar de fatos que vivenciamos para as gerações imediatamente futuras).

A primeira delas é como sobre a importância de cuidar das nossas ações para não sermos vítimas delas. Nos ensina a História que a Revolução Francesa, deflagrada com a tomada da Bastilha em 1789, foi o ponto de virada da Idade Média para a modernidade. A Revolução Americana ocorreu antes, em 1776, mas não teve nem uma fração da sua repercussão, dado que a Europa ainda era (e permaneceu por muito tempo) o centro de poder no mundo.

A questão é que depois da Revolução formou-se a convenção de Jacobinas e Girondinos, todos representantes da burguesia (ou seja, a massa de gente pobre que sustentava o Estado). Os Jacobinos sentavam-se à esquerda e os Girondinos à direita. Os Jacobinos eram a ala mais radical da revolução e queriam acabar com a monarquia completamente, instituindo um Estado sem nobreza e sem igreja. Os Girondinos eram aqueles que queriam a revolução, queriam mais espaços de poder e menos privilégios para nobreza e clero, mas conviviam bem com a monarquia.

Parêntesis 1: se você não sabe, esta é a origem da expressão “ser de esquerda” e “ser de direita”, querendo dizer que “ser de esquerda” é ser mais Jacobino e querer virar tudo de ponta cabeça e “ser de direita” é ser mais Girondino e querer mudar as coisas sem maiores estardalhaços. Daí a origem da expressão, muito comum nos EUA, de “progressista” e “conservador” para cada lado da assembleia.

Voltando: Depois de instalada esta assembleia, o Rei tentou dar um autogolpe para se manter no poder, o que deu bastante errado e o levou, junto com a sua esposa, para a guilhotina. Com isso, instaurou-se na França um período chamado de “Fase do Terror”, onde os revolucionários buscavam eliminar todos os representantes do “velho modo de governar” do território francês.

A principal forma que isso foi materializado nós conhecemos bem: a guilhotina. A França nunca cortou tantas cabeças em praça pública como nessa época. E é neste ponto que eu queria chegar. Diz a História também (e que aqui se mistura um pouco com lenda e não dá para levar tão literalmente) que muitos revolucionários também foram enforcados, seja por engano, seja por acusação de traição (verdadeira ou falsa) ou por perseguição de opositores.

Em uma dessas guilhotinadas no mais alto estilo Coliseu, um dos próximos a perder a cabeça (que tinha participado ativamente da construção de tudo aquilo) gritou aos brados que tudo aquilo estava muito errado, ao que ouviu: “submeta-se à lei que tu mesmo criaste” ou algo do tipo. E ele foi degolado.

Por que esta história é importante? Para nos mostrar que em termos de poder, ninguém “é”, mas “está”. Ele passa e não temos a menor ideia do que vem depois.

Para demonstrar isso, vamos falar do nosso quintal? Quando Lula foi declarado inelegível pela Lei da Ficha Limpa e a esquerda brasileira se lamuriava pela perseguição judicial que seu líder estava sendo submetido, este que vos fala estava contando esta historinha aí de cima e dizendo: “submetam-se à lei que vos mesmos criastes”.

Se você der uma pesquisada na Lei da Ficha Limpa vai descobrir que quem assinou o documento foi exatamente o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sabe quem reclamou da lei na época? Tenta chutar aí por favor...

Se você disse a oposição, os grupos “de direita” e etc., você acertou em cheio! A justificativa: era uma norma para perseguir opositores e se perpetuar no poder. Teve até ação direta de inconstitucionalidade no STF contra a lei. Tudo que era possível para derrubar a norma foi feito e não deu certo.

Ora vejam só como a terra plana capota! Depois de publicar a norma com pompa e circunstância, Lula foi impedido de concorrer por causa dela. À época, todo mundo que vinha reclamar comigo eu dizia a mesma coisa: se está certo ou errado, não é o ponto a discutir. O ponto é que todo mundo pode reclamar da lei, menos o Lula que, com a caneta na mão, a chancelou e fez publicar com seu nome ao final. Submeta-se à lei que tu mesmo criaste...

E não é que a terra plana é terrivelmente acelerada em suas capotagens! Até porque, no Brasil, a gente passa tudo, menos tédio.

Sabe a discussão se o 08/01 é terrorismo ou não? Isso é bobagem de grupo de whatsapp! Esquece isso e vem pensar no que importa: a norma utilizada para punir as pessoas que estavam em Brasília em 08/01/2023 é a Lei n. 14.197 de 1º de setembro de 2021.

Já entendeu né... pois é. Assinadíssima por ninguém mais ninguém menos do que Jair Messias Bolsonaro, Anderson Gustavo Torres, Walter Souza Braga Neto, Damares Regina Alves e Augusto Heleno Ribeiro Pereira. Repete comigo: “submeta-se à lei que tu mesmo criaste”. Neste caso, o Anderson Torres mais do que ninguém, mas é um detalhe que poderia passar sem manifestação. Eu que não resisti.

Agora vamos continuar nas conclusões lógicas: quem não gostou da lei? Se você disse “a esquerda”, acertou de novo e merece uma estrelinha. Para completar o combo do dever de casa, você deveria complementar que a grita geral foi que a lei seria para perseguir opositores e garantir a manutenção do governo no poder.

Percebeu a semelhança do caso da França, da Lei da Ficha Limpa e da Lei de atos antidemocráticos? Pois é, o ponto é exatamente esse. São os mesmos atores, de lados opostos e com efeitos idênticos. E a minha resposta é a mesma: “submeta-se à lei que tu mesmo criaste”.

A partir de agora, quando você for pedir uma lei para o seu inimigo, se pergunte o que aconteceria com você se o seu inimigo estiver no poder com esta lei em vigor. É uma boa medida para avaliar se você quer uma lei em um Estado de Direito ou se você quer eliminar alguém que lhe desagrada.

O outro ponto é a discussão tem tudo a ver com essa conclusão e se relaciona com o 08/01 em si. Faça o seguinte exercício comigo: pensa no grupo de pessoas que você menos suporta. Qualquer um, fique à vontade.

Eu vou dar o exemplo mais bolsonarista que eu consigo pensar: o MST. Vamos imaginar toda a cena, mas com milhares de camisas vermelhas, bandeiras da CUT e bonés com foices e martelos. Tudo igual, mas com este elemento estético diferente. Como estaríamos reagindo? Como você reagiria?

Eu vou falar por mim, pois não sei falar por mais ninguém: estaria condenando veementemente todos os atos, dado o alto grau de reprovabilidade da conduta. Mais do que isso, estaria aqui contando exatamente esta mesma história para afirmar que há previsão legal expressa (que não tem nome de terrorismo, mas está na lei e isso que importa) que pune criminalmente o que ocorreu em Brasília no 08/01.

Por fim, estaria defendendo que cada um que participou daquele cenário deplorável pague por cada real do pagador de impostos que foi gasto com aquela depredação abjeta contra bens públicos.

Considerando este cenário, dado que qualquer grupo que eu coloque ali me faz chegar à mesma conclusão, sem aliviar um único item em todas as hipóteses, me autorizo a concluir que consigo fazer uma análise razoavelmente isenta. Em nenhuma hipótese fico feliz com a situação e em nenhuma hipótese consigo minimizar os efeitos e danos suportados pelo Estado e pela sociedade em razão daquela irresponsabilidade.

Conheço pessoas que estavam lá e são todos irresponsáveis, desrespeitosos do patrimônio público e pouco afetos aos meios civilizados de resolução de disputas políticas. Não são patriotas e nem nunca foram. São “grupistas” pouco interessados em qualquer coletividade que se possa chamar de Estado ou nação.

Não são necessariamente criminosos, pois esta é outra discussão e se restringe à análise de adequação da conduta de uma pessoa a uma previsão legal prevista na lei penal. Entretanto, todos que aquiesceram com o que ocorreu são autores de conduta ilícita ou, ao menos, moralmente muito reprovável. Quem executou ato de depredação do patrimônio público é criminoso mesmo, não tem como aliviar.

Por que essa conclusão é importante? Para não transmitirmos o recado de que o patrimônio público está exposto ao humor de uma horda descontente; para que nossas crianças cresçam sem a impressão de que a discordância justifica a violência e a barbárie; para não nos sentirmos obrigados a justificar o injustificável e criar espaço para discursos violentos; para ensinarmos para a presente e as futuras gerações que não existem seres humanos melhores que outros ou menos criminosos que outros, de modo que qualquer um que viole a lei deve ser punido.

E se discordamos da lei, então atuemos de forma institucional para mudar a lei e não para destruir o Estado e suas instituições.

E se a sua conclusão sobre o nome a dar para isso tudo varia de acordo com o ator que a pratica (ora terrorista e ora patriota, a depender de quem vai receber a pena), sinto muito, mas você corre um grave risco de se submeter à lei quando seu inimigo estiver no poder. Não nos esqueçamos que Estado de Direito não é sinônimo de paraíso na terra. Pelo contrário!

Estado de Direito é Estado de conflito, dado que todo mundo pode ter voz e a discordância é inevitável. Paz e tranquilidade se tem naqueles países em que discordar é sinônimo de bilhete premium para a cova. Se é esta paz que você busca, é bom tomar cuidado com o que desejas e com que crias, pois pode ser que seja chamado a se submeter à sua criatura.