O presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar da Costa Neto, fez declarações elogiosas ao presidente Lula. Obviamente, isso acendeu a fúria da bolha bolsonarista, já que o PL é o partido de Jair Bolsonaro e elegeu praticamente todos os seus atuais representantes a partir da plataforma bolsonarista. Daí em diante, foi armado o circo das torcidas organizadas “meu político de estimação futebol clube” para se atacarem mutuamente em prol de qualquer coisa que eu não sei mais dar o nome.
Fato é que algumas coisas precisam ser colocadas em claro para fazer uma análise desta situação com um pouquinho menos de paixão e um pouquinho mais de sensatez sobre a terra que nós pisamos. Como eu sempre digo, o Brasil não é terra para amadores e cada dia mais é preciso levar esta afirmativa a sério.
Então vamos aos fatos: o primeiro ponto muito (muito!) relevante para entender esta história é o fato de que o brasileiro é um povo desonesto em um volume que temos dificuldade de aceitar. Tem gente desonesta em todo lugar! A pandemia foi um exemplo sensacional disso: enquanto tinha gente passando fome e comendo lixo, tinha uma galera andando de carro do ano e... recebendo auxílio emergencial.
No dia a dia, vá ao supermercado da zona sul e você fatalmente trombará com distintas senhoras da classe média alta, muito bem vestidas, educadíssimas e... furando a fila. Vá perguntar a um juiz quantos pedidos de gratuidade de justiça ele recebe por dia de pessoas que estão entre os 10% mais ricos do país, somente pela postura de jogar na sorte para ver se passa e o juiz não vê.
Vá uma faculdade de direito e contabilize a quantidade de trabalhos e provas colados sistematicamente para a obtenção da nota de corte para aprovação. Conviva em um gabinete parlamentar (falo isso por experiência própria) e você será achacado todo santo dia com um pedido de alguém para que o parlamentar pratique um ato de corrupção para lhe favorecer ou favorecer algum dos seus.
Falar do político de estimação é simples! Fala do político inimigo é mais simples ainda! Difícil é reconhecer que a pessoa que está ao seu lado, seu amigo de infância, um parente próximo ou coisa do gênero é muito pior do que o político corrupto. Difícil é reconhecer que, em termos de legislativo, estamos muito bem representados, visto que a classe que apanha publicamente todos os dias reflete bem quem somos nós “do chão da fábrica”.
E por experiência, aqueles malucos que chegam nestes lugares e não reproduzem este jeito de ser tupiniquim apanham em dobro, são achacados em dobro e muitas vezes são expulsos desse ambiente. Apenas a título de exemplo, na última legislatura para a Assembleia do Estado de São Paulo, o Deputado Estadual mais econômico de toda a legislatura (ou seja, que não sugou o dinheiro do contribuinte) era um ingênuo iniciante de primeiro mandato. Teve projetos aprovados e um trabalho contínuo durante os quatro anos. Eu não preciso te falar que ele não conseguiu se reeleger né? Ok. Sigamos.
Dado este cenário, é preciso entender que o Sr. Valdemar da Costa Neto era ninguém mais, ninguém menos, do que o responsável pela indicação do Vice-Presidente do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002! Sim... José Alencar, o representante do empresariado no governo Lula 1, era indicação direta de Valdemar, com aquele discurso de sinalizar ao mercado que Lula estava mais mansinho.
E Sr. Valdemar ficou ao lado de Lula muito tempo. Neste meio tempo, foi até condenado no famoso caso do mensalão, que ando descobrindo as crianças já não conhecem mais de forma tão viva quanto a gente que já cruzou algumas fronteiras etárias. Ele cumpriu pena, virou ex-deputado e... bom, virou deputado de novo. Lembra lá de cima que nós estamos em terra cuja sobrevivência exige profissionalismo.
Quando nosso distinto personagem volta à cena, quem está às voltas com o poder? Sim... ele, o mito, o incorruptível, aquele que não faz negociata, o salvador da pátria Bolsonaro. E Sr. Valdemar aparece em um momento delicado do governo Bolsonaro, quando ele estava descobrindo que esse negócio de achar que Executivo manda é meio balela.
Parêntesis: falar isso sempre me espanta porque ele ficou 30 anos da Câmara dos Deputados e fica difícil defender que ele não sabia como a máquina funciona.
Voltando: daí o Sr. Valdemar foi mostrar para o então chefe do Executivo como é que a máquina funciona. Existem os polos, que são os extremos. Ali ficam os membros da torcida meu político de estimação futebol clube. Eles se matam, se xingam, se humilham, perdem emprego, amigos e familiares, entram em processos criminais e civis, etc. É uma bagunça muito louca e dá boas reportagens para a TV.
Entre um extremo e o outro existe o centro: é um conceito matemático simples. No espectro político, este centro é formado por uma miríade de partidos que não têm cara, não têm lado, não têm ideologia, não têm amigos, muito menos inimigos, mas têm dono. E esses donos gostam de dinheiro.
É por isso que, curiosamente, o centro tende a ser razoavelmente governista: dizendo de outro modo, vota-se no parlamento aquilo que é de interesse do governo da vez. Se você observar o padrão de comportamento destes partidos (e isso dá um trabalho da peste, o que para eles é ótimo), perceberá que antes eles votaram majoritariamente a favor das pautas de Bolsonaro e hoje votam majoritariamente a favor das pautas de Lula.
E questionará um inocente membro da torcida organizada meu político de estimação futebol clube: mas como isso é possível? Esse povo não tem consciência? E eu respondo: esse povo tem bolso e isso afaga a consciência de uma forma indefectível. Quando se está diante de uma possibilidade real de reeleição então, tudo fica ainda mais interessante.
Este é aquele momento em que a estrelinha explode na sua cabeça brilhando “Eureka” e você entende porque o Ciro Nogueira (chefão do PP) era o Ministro Chefe da Casa Civil de Bolsonaro e agora o PP vota com o governo Lula. Entende também porque a Ana Moser sentiu o gostinho de ser ministra do Esporte muito pouco tempo e a representatividade feminina na gestão da CEF não durou sequer 1 ano.
Também este é o momento em que um bom aluno liga os pontos para entender qual a ideologia do centro: sentar à mesa com quem tem a chave do cofre nas mãos. A sistemática de diálogo com o centro é muito simples: você tem a chave do cofre? Se sim, então seremos amigos. Se não, você pode até ser legal, mas a nossa relação será mais protocolar.
Ter esta clareza é muito relevante para entender as manifestações que pululam de um lado a outro por aí e causam certos alvoroços. É entender porque Valdemar era esquerdista da base de apoio direta de Lula; daí Bolsonaro xingava Valdemar de corrupto condenado de um lado; Valdemar xingava Bolsonaro de fascista do outro; depois Valdemar virou conservador defensor da ética, moral, família e bons costumes; depois se abraçaram e viraram aliados; e agora estão brigando de novo.
Tudo isso está diretamente ligado ao dono das mãos que seguram a chave do cofre. O ponto central e definidor de tudo é esse. Bolsonaro e Lula devem saber muito bem que o centro gosta tanto de dinheiro que não há dinheiro no mundo que o compre; entretanto, é razoavelmente simples negociar as condições para locação.
Eu deveria terminar dizendo que talvez seria importante que as pessoas devessem saber disto também. Entretanto, considerando que não podemos nutrir grandes expectativas sobre o comportamento de parte da população, talvez seja melhor terminar sem dizer nada. Vai que o povo esclarecido decide exigir a sua parte para garantir a governabilidade?