No último dia 05, data inconstitucional de abertura da sessão legislativa de 2024, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, proferiu uma manifestação um tanto quanto inusitada. Para quem não sabe, a Constituição manda começar no dia 02, mas esse dia era sexta, né... aí é pegar pesado demais com nossos ilustres parlamentares. Mas, voltando ao que interessa, de forma bem direta, afirmou com todas as letras que o orçamento não é do Executivo e sim que o orçamento é “nosso”.
Alguma criança mais incauta poderia interpretar que ele quis dizer que o Lula não pode se apropriar do orçamento para cumprir sua agenda pessoal e que o Legislativo, legítimo representante do povo brasileiro, teria que ser participado deste projeto. Entretanto, para os menos apressados em concluir e mais interessados no contexto, é fácil de perceber que a tônica é bem diferente.
Lira deitou em berço esplêndido nos dois últimos anos do governo Bolsonaro. Também pudera, para a tal da governabilidade, Bolsonaro deu a chave do cofre para Lira e as decisões orçamentárias era praticamente dele e de Ciro Nogueira – então Ministro-Chefe da Casa Civil. Quem é que não se lembra do orçamento secreto? Pois então... ele nasceu neste contexto e foi fartamente usufruído por “quem de direito”, que obviamente não é o povo brasileiro.
Veio a campanha, geral pedindo voto para Bolsonaro, Lira no palanque sendo chamado de “cabra da peste” em um afável elogio à força do presidente da Câmara e o Lula ganhou. Dia seguinte, quem foi o primeiro a vir a público reconhecer o resultado das eleições e afirmar que não teria qualquer problema em tratar com o novo governo?
Sim... nosso “cabra da peste”. E lá estava ele mesmo! Chamou o governo, conversou e colocou as suas condições. E as condições são simples: cash. O problema é que dinheiro tem uma peculiaridade razoavelmente comum para quem o amealha de forma peculiar, qual seja: ele não tem limites!
E a culpa é do Lira? Claro que não. Ele é mais uma engrenagem de um sistema extremamente complexo que leva o funcionamento do Brasil a se assemelhar bastante com um Corcel II, 1987, a álcool: funciona, mas depois de gastar muito combustível parado e engasgar pela metade do percurso a ser percorrido.
Para entender esse contexto, é preciso muito mais que um texto e, para me concentrar nesta questão da falta de limites para o dinheiro, vou fazer uma pequenina linha do tempo que começa com uma figura central para tudo isso que estamos vivendo hoje. Minha referência é ao emblemático Eduardo Cunha.
Eduardo Cunha é daqueles políticos clássicos: já foi esquerdista, já foi liberal, já foi centro, já foi governo, já foi contra o mesmo governo que foi a favor e por último virou cidadão de bem conservador contra o PT. Não tenha dúvida, cada movimento tinha o único objetivo de atingir os interesses da vez com a turma da vez no governo.
Quando ele se torna presidente da Câmara, quem é o governo da vez? Dilma Rousseff.
Ele, como bom presidente da Casa do Povo, vai à Presidente da República e faz o que todos os presidentes da Casa do Povo fazem: pede dinheiro, cargos e pagamento de emendas. A então Presidente, em um ato de ingenuidade ou burrice mesmo, resolve achar que não era bem o caso de atender todas as demandas do “povo”.
Neste contexto, as emendas parlamentares deixaram de ser pagas. Sabe o que é uma emenda parlamentar? É um pedaço do orçamento do Executivo gentilmente cedido aos parlamentares para “alimentar” as suas bases.
Isso tem uma lógica: o brasileiro médio, para defender um político de estimação ou um que lhe pague, precisa mostrar que ele fez alguma coisa. Só que o trabalho do legislativo é intelectual e fiscalizatório e isso ninguém dá a mínima. O povo gosta é de obra, asfalto, posto de saúde, escola para a molecada, umas ambulâncias e umas viaturas e essas coisas.
Só que isso tudo é atribuição do Executivo. Então o Legislativo, para não ficar de fora da festa e facilitar um pouco a captação de votos para as próximas eleições, combinava com o Executivo um pedacinho do bolo para enviar para a prefeitura da sua base de votos. Aí era só lançar um bocado de outdoors com a cara dele e um textão bem simples assim: “Nosso Deputado Bolinha destina R$ 200.000,00 para a saúde de Arapiraca" (sim, é um município de Alagoas).
Olha que legal, o povo fica feliz e acha que o deputado fez a obra! Voto certo e reeleição garantia. Só ir para o próximo acordo.
Qual era a fragilidade deste sistema: isso tudo era um imenso acordo de cavalheiros, sem qualquer vínculo institucional que obrigasse ao seu cumprimento. Aí que nasce a tal “governabilidade”. Eu pago as suas emendas de cá e você vota os meus projetos de lá. Tanto é que a base do governo sempre tinha mais emenda que a oposição por motivos óbvios.
Só que a então Presidente Dilma, por falta de grana em caixa, resolveu, nos moldes do Seu Madruga, cruzar os braços e falar que este mês não vai rolar o pagamento. O desfecho da história você conhece e eu espero bastante que nesta altura do campeonato a maioria das pessoas adultas não alimente a crença de que a Dilma sofreu impeachment pelos crimes que cometeu.
O crime dela foi não agradar aos legítimos representantes do povo que, por isso, julgaram que ela não era bem merecedora do cargo. E para evitar ter que ficar tirando cada Presidente que ousasse falar que não tinha dinheiro para pagar as emendas, nossos digníssimos parlamentares foram lá e criaram as emendas impositivas.
Pararam para emendar a Constituição (procedimento complexo) para colocar lá que o então acordo de cavalheiros agora é regra constitucional, passível de crime de responsabilidade pelo seu descumprimento. Não satisfeitos, emendaram de novo, para incluir as emendas de bancada como impositivas (sabia que existe essa também?).
Como não foi suficiente, emendaram uma terceira vez, agora para estabelecer os parâmetros (inclusive com a fixação do percentual do orçamento a pagar) e as formas de pagamento das emendas, de modo a facilitar que o dinheiro chegue nas bases, mesmo que as bases sejam caloteiras com a União. Aqui já estamos na era Rodrigo Maia e depois com Lira.
Sacou? A Constituição foi retalhada inúmeras vezes e em tempo recorde somente para atender aos anseios do povo brasileiro e evitar que algum desavisado Presidente deixe cada parlamentar sem o seu devido orçamento de campanha.
Aí vem a questão do início do texto: foi suficiente? Claro que não. Daí veio o orçamento secreto, que todo mundo já ouviu falar. Não bastasse tudo isso, agora ouvimos o Presidente da Câmara reclamar que o “orçamento é nosso” e não do Executivo, como se não fossem devidamente contemplados no orçamento.
Eis aí suco de Brasil: quando a questão é complexa demais para ser entendida com a devida racionalidade pelo “cidadão médio”, cria-se uma simplificação falsa e produz-se todo tipo de absurdo possível e imaginável. O resultado é um orçamento praticamente inexequível e um Executivo cada vez mais inoperante pela necessária submissão aos anseios dos legítimos representantes do povo brasileiro.
A culpa de tudo isso é obviamente nossa! Ainda caímos no conto do vigário de ficar igual uma horda de acéfalos brigando por causa da eleição do Executivo, a demonstrar a ingenuidade do “cidadão médio” de acreditar que o Presidente é que manda na bodega toda. Enquanto isso, as eleições que realmente importam (as do Legislativo) passam despercebidas e as pessoas, pouco interessadas, votam no candidato que o amigo está trabalhando na campanha ou (pior!) naquele que “construiu a Upa lá perto de casa”.
E assim eles vão regendo o Brasil, submetendo presidente atrás de presidente às suas vontades. Ou melhor, às legítimas aspirações do povo brasileiro, que continua deitado em berço esplêndido.