O tema que ocupou fortemente o noticiário destes últimos dias foi o evento convocado pelo ex-presidente Bolsonaro na Av. Paulista no último domingo. Como você já me conhece, não me interessa muito falar sobre o que todo mundo já está falando.
De todo o ocorrido, uma das coisas que mais me surpreendeu foi a manifestação da ex-primeira-dama, Michele Bolsonaro, ao afirmar que política e religião não só podem com devem se misturar. A ex-primeira-dama ainda enfatizou que “antes” se dizia que não podia misturar política com religião, em um claro aceno de que “agora” a pauta política será religiosamente guiada.
E desta manifestação se seguiu um fervoroso aplauso do grande público que estava presente, acenando também que concordavam com a manifestação que acabavam de ouvir. Logo, há aqui um duplo problema: a manifestação em si e a concordância generalizada do seu conteúdo.
Isso porque a manifestação é infeliz, absolutamente equivocada e nos aproxima do pensamento político medieval. O Estado tal como o conhecemos hoje advém da ruptura definitiva com a monarquia e a igreja, instituições que se assenhoravam do poder político exclusivamente para si.
Curiosamente, um dos movimentos que mais proporcionou ambiente para esta ruptura foi a reforma protestante encabeçada por Lutero. Veja bem, a reforma que deu vida ao movimento evangélico está agora na base do movimento que, aparentemente, busca fazer o movimento oposto e retomar para a igreja o poder político.
Não deu certo com a Igreja Católica e obviamente não tem a menor chance de dar certo com a Igreja Evangélica, assim como não daria certo com qualquer outro segmento religioso. Basta observar que todos os países que possuem base religiosa como poder político são inexoravelmente ditaduras.
Veja bem, nem toda ditadura é religiosa, mas todo Estado governado sob a premissa religiosa é ditador (assim como também é ditador o Estado ateu). Isso ocorre porque a religião é essencialmente ditadora e o motivo é simples: quem é religioso de uma vertente é ateu de todas as demais.
E normalmente este ateísmo das outras religiões leva ao seu rebaixamento. Isso é de uma obviedade ululante, como diria Nelson Rodrigues (que é uma referência muito ruim quando se está tratando de religiosidade, mas foi a que veio). Por consequência igualmente óbvia, o Estado institucionalmente religioso não consegue fugir da sina de criar “castas” entre o seu povo, separando aqueles aderentes à religião oficial daqueles não aderentes à religião oficial.
Basta estudar um pouquinho do que ocorre hoje na Índia para ter uma dimensão do que é o Estado subvencionar a destruição de templos sagrados (da religião do outro) apenas para construir os seus próprios bem em cima dos escombros. Ou então pesquisar o que acontece com padres católicos nas ruas de Israel...
Parêntesis: essa última eu tentei evitar, mas não resisti. Foi proposital para semear a discórdia mesmo. Briguem por favor! Mas pelo menos busquem saber a “fineza” do tratamento que um cristão recebe em Israel. E olha que lá, em tese (bem em tese), o Estado ainda é laico.
Voltando: Percebe o elemento de dominação e subjugação perigosíssimo?
E se o Estado é religioso, então a lei é religiosa, as instituições são religiosas, a seleção dos representantes do Estado é religiosa e a tomada de decisão sobre a vida dos cidadãos é religiosa. Interessa menos a técnica e mais a aderência teológica, o que vai, gradativamente, eliminando qualquer pluralidade. Ao fim ao cabo, reinstauramos um Tribunal do Santo Ofício para a caça às bruxas, pois nós adultos sabemos que a alegoria da bruxa nada mais era do que o simulacro para a perseguição e morte do divergente.
Fatalmente não parece uma boa ideia. Talvez para mim, que não comungo da mesma ideologia religiosa da ex-primeira-dama, possa parecer uma ideia ainda pior, visto que é fácil me colocar no lugar de primeiro “marginal” da história. Mas mesmo você meu amigo leitor que comunga da mesma verdade religiosa da ex-primeira-dama deveria se preocupar com esta manifestação, dado que a premissa tem, como sói acontecer sempre em tais situações, dois lados.
Se por um lado pode parecer interessante instaurar um Estado fundado na sua perspectiva religiosa de mundo, por outro cria a premissa de que é possível instituir qualquer fundamento religioso para este Estado (e que não necessariamente é o seu). O Estado laico evita exatamente isso: que as pessoas tenham ideias...
Ou seja, aplaudir a ex-primeira-dama agora é, ao mesmo tempo, avalizar um número indeterminado de pessoas e grupos que podem, talvez, achar razoável brigar para ver qual religião dominará o Estado – já que esta é uma premissa tida como possível. E neste cenário, quem aplaude pode virar marginal igual eu me sinto agora. E garanto, não parece uma boa ideia...