O ex-juiz, ex-deputado, ex-governador, ex-ministro, senador e futuro ministro do STF (eu precisava colocar essa lista, pois nesta vida uma coisa dessas não acontece de novo), Flávio Dino, apresentou uma PEC que deveria ser estampada em um quadro. Em sua brevíssima passagem pelo Senado (apenas um mês, com um carnaval no meio), o futuro ministro apresentou uma PEC que acaba com a figura da aposentadoria compulsória como punição para magistrados e com a morte ficta para militares.

 

Parêntesis: independentemente do espectro político, a proposta merece ser comemorada. Infelizmente, em terras tupiniquins, os projetos que não são apresentados pelo seu político de estimação tendem a ser criticados porque foram apresentados pelo político de estimação do outro. De forma inacreditável, representantes da direita estão criticando o projeto defendendo a manutenção da aposentadoria compulsória sob os mais absurdos argumentos.

 

Curiosamente, sempre foi uma pauta de partidos conservadores e liberais o questionamento sobre “privilégios” do Estado. Agora, por um pitoresco “milagre”, mudaram de ideia. Mas não nos preocupemos, a racionalidade volta quando um dos seus apresentar projeto igual e nos fazer prova de que no Brasil pensar é um ato de coragem.

 

Voltando: sobre os militares pouco me dedicarei. Primeiro porque a inusitada “morte ficta” era um vergonhoso exemplo de desvirtuamento de instrumentos criados em tempos de guerra em prol da família daqueles que efetivamente estiveram em batalha. Definitivamente não é o caso das nossas forças armadas e muito menos se aplicava aos descalabros que tivemos o desprazer de acompanhar.

 

A abolição dessa bizarrice estava atrasada, posto que está no mesmo nível das aberrantes pensões para as filhas eternamente solteiras de militares. Já foi tarde.

 

A questão do Judiciário é muito mais complexa, e há motivos para isso. O magistrado é agente político (e pelo amor de Jesus, político aqui é termo técnico que significa que ele exerce poder de Estado). Seus atos não são atos administrativos, mas legítimas manifestações da República instituída pela Constituição.

 

Além disso, é preciso entender o contexto histórico da construção das prerrogativas da magistratura. O magistrado, em sua gênese, era um representante dos interesses do Império, de modo que sua conduta não era imparcial, mas voltada para a manutenção dos interesses do rei/imperador.

 

Caso o juiz não atendesse aos interesses do soberano, era simplesmente substituído por outro que o fizesse. Obviamente que não demanda muito para concluir que este cenário não é muito favorável para o “cidadão comum”.

 

Além disso, mesmo nos Estados que passaram por todo o processo de transformação republicana, a magistratura por longo período foi restrita para uma classe social determinada. A justiça era feita por alguns, para alguns e em alguns contextos.

 

A posição dos magistrados, mesmo em Estados com clara divisão de poderes, era ainda baseada em sobrenomes, dado que todos os envolvidos eram, direta ou indiretamente, coligados por laços familiares, comerciais ou sociais.

 

Claro que se trata de um recorte muito simplista, mas necessário para chegar onde preciso. A forma de frear este desvirtuamento do Judiciário e lhe atribuir a capacidade real de prover o seu papel foi com a concessão de prerrogativas. A prerrogativa não é um privilégio, mas uma necessidade para o pleno exercício das funções.

 

Obviamente, quanto maior o nível de criticidade das funções, mais prerrogativas seu detentor deve ostentar. Para dar exemplo desta importância, não precisamos ir longe. Os juízes da Suprema Corte dos EUA são vitalícios. Só se aposentam se quiserem. Se não quiserem, ficam lá até morrer. Ou seja, cada presidente que entra, goste ou não da Suprema Corte, vai ter que acatar as suas decisões, pois a sujeição da Corte se dá apenas em face da Constituição.

 

Agora, podemos descer um pouquinho no mapa e dar uma olhada em El Salvador. Lá, o atual presidente, Nayib Bukele, não estava muito feliz com o Congresso e foi lá com um monte de tanques de guerra e soldados com armas em punho para mandar o Congresso votar como ele queria.

 

Como se estava em um Estado Democrático de Direito, estes e outros atos foram questionados perante a Suprema Corte do país, que agiu como se espera em qualquer Estado Democrático: declarou inconstitucional as ações presidenciais. Pois bem, sabe o que o presidente fez? Destituiu os membros da Suprema Corte de El Salvador e colocou, sob escolta policial, outros membros que atendiam aos seus interesses.

 

Por absoluta coincidência do destino, os novos membros da Suprema Corte Salvadorenha entenderam juridicamente que o Presidente, ao contrário do que diz a Constituição do país, poderia se candidatar à reeleição no pleito realizada no dia 4 de fevereiro de 2024. De forma surpreendente, o presidente se reelegeu com 85% dos votos! É uma unanimidade!

 

Percebeu a diferença?

 

É importante observar como essas prerrogativas são absolutamente importantes para os digníssimos cidadãos com pensamentos políticos extremos. Meu amigo lulista, você imagina um poder desses nas mãos de Bolsonaro quando presidente? Agora você, meu amigo bolsonarista, imagina um poder desses na mão Lula agora na presidência? Para qualquer um com bom senso, não parece uma boa ideia nenhuma das duas hipóteses.

 

Isso tudo é só para mostrar que as prerrogativas dos juízes são necessárias e constituem verdadeira garantia de independência ao decidir – o que beneficia, ao final, o cidadão. O Judiciário, silenciosamente, é responsável por sofrer as maiores pressões de poder, visto que suas decisões são exatamente as únicas capazes de suplantar o abuso de poder político, econômico, midiático e tudo mais.

 

Neste cenário, conseguimos entender porque não dá para estabelecer a “demissão” de um juiz como ocorre com outros cargos públicos. A criticidade da atividade impõe garantias maiores, pois, a depender do contexto, o juiz pode estar exposto a manifestações absurdas de poder, que seriam facilmente capazes de inventar um processo de demissão contra seus desafetos.

 

Entretanto, como sói acontecer em qualquer Estado Democrático de Direito, não existe (e nem pode existir) um ser intocável. As prerrogativas do magistrado não podem ser uma liberação para a prática impune de condutas ilícitas.

 

Neste cenário, o que a prerrogativa do magistrado estabelece é uma aplicação mais robusta do princípio da manutenção do estado de inocência do juiz acusado de um ato ilícito. Se o fato constituir crime, o juiz somente perde o cargo por decisão condenatória transitada em julgado. Antes disso, não pode sofrer restrições nas suas atividades.

 

Se o fato, por sua vez, constitui uma violação dos deveres do magistrado, conforme listados na Lei Orgânica da Magistratura, mas não constitui crime, nem o Judiciário pode demitir o juiz, cabendo inúmeras penas possíveis ao magistrado faltoso. Dentre elas, a mais grave é a aposentadoria compulsória, retirando do magistrado sua maior parcela de poder – que a decisão sobre a vida, liberdade e patrimônio alheios.

 

Colocado assim em perspectiva, é perfeitamente compreensível o instituto. Entretanto, tivemos a triste oportunidade de presenciar atos flagrantemente criminosos de pessoas que, indevidamente, ocupavam o cargo de magistrados.

 

Em um dos mais recentes, um juiz do trabalho assediou sistematicamente, de forma violenta e ameaçadora, uma série de mulheres que atuavam perante aquela Justiça, seja como servidoras, advogadas ou estagiárias. Neste emblemático caso, a então presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministra Rosa Weber (exatamente a cadeira que Dino irá suceder), se manifestou sobre a limitação da punição administrativa para estes casos tão graves.

 

É aqui que a proposta do futuro ministro proporciona um ganho republicano sem precedentes para a magistratura brasileira. À vista de quem está de fora e sem o contexto, aposentar compulsoriamente um assediador é apenas um prêmio por uma conduta ilícita, o que subverte completamente a natureza e a função do instituto.

 

A correção desses limites institui claro mecanismo de fortalecimento do próprio Judiciário. A partir da proposta, a Lei Orgânica da Magistratura disciplinará a perda do cargo por falta grave por processo administrativo. Tal alteração não enfraquece a magistratura, pois a decisão, ainda que administrativa, será proferida por magistrados.

 

Além disso, nada impedirá que a pessoa punida busque pelo Judiciário para reverter a decisão, de tal modo que a condenação será revista por todas as instâncias judiciais existentes, garantindo-se o devido processo legal e o resguardo das prerrogativas do cargo.

 

Quem ganha é a própria magistratura, pois passa a ter ferramentas para lidar com esses casos excepcionais, mas que repercutem fortemente e acabam por afetar a própria imagem e credibilidade do Judiciário. É uma medida republicana e moralizadora que beneficia a maioria dos membros do Judiciário que atuam com seriedade e retidão. Afinal, ninguém lembra do nome do ex-juiz assediador, mas todos lembram que era um juiz, e esse é o ponto mais relevante de todo o contexto.

 

Acertou Dino na apresentação da PEC e acertou mais ainda no contexto. Ele, inusitadamente um atual senador e futuro juiz, era a pessoa mais habilitada para tomar esta iniciativa. À direita descontente, que questione seus representantes porque não tiveram a ideia antes.

compartilhe