Nessa terça-feira (2/4), dia em que escrevo este texto, comemora-se o Dia Internacional de Conscientização do Autismo. A data foi fixada pela Organização das Nações Unidas em 2007, o que, desde já, mostra o quão recente é esta realidade no mundo.
Autistas sempre existiram, só não eram reconhecidos – assim como inúmeras outras pessoas com as mais diversas condições. Um dos grandes valores do avanço do conhecimento é o de dar nome às coisas e, com isso, humanizá-las.
As crianças não vão entender, mas quem viveu o mundo da escola do milênio passado sabe muito bem que a diferença era massacrada em todos os sentidos. Eu vivi isso a vida inteira a ponto de, ao contrário do que muita gente pensa, sempre ter odiado a escola.
Era um ambiente hostil, com gente indiferente e capaz de excluir sem qualquer cerimônia quem não se enquadrasse no conceito de “aluno padrão”. Aí vem a ciência e diz para as pessoas: Está vendo aquela criança esquisita, que não aprende direito e que é incapaz de usar as margens do caderno?
Pois é, ela não é “malandra” ou “desobediente”, mas apenas tem uma condição que faz com que não se encaixe neste padrão que você espera. Ele não é ruim, mas diferente. E esta diferença precisa ser respeitada para que a pessoa consiga fazer parte de uma sociedade que não entende claramente como ela se comporta.
É um movimento bonito de perceber e, ao mesmo tempo, complexo. Eu vivo o autismo todos os dias e, por isso, tenho uma percepção altamente ampliada do que é o autismo. E nesta vivência faço questão de informar as pessoas que estão ao meu lado sobre o que é o autismo. Faço isso o tempo inteiro e intuitivamente e, provavelmente, devo chegar ao ponto de aborrecer os poucos que convivem comigo com mais proximidade.
O raciocínio é simples: se até 2013 o autismo não tinha CID, se a lei que reconhece o autismo como deficiência (e, por consequência, necessidade de inclusão) é de 2012 e as políticas públicas a respeito somente vieram depois disso, há um espaço de desinformação imensa sobre a matéria. O dia da conscientização serve exatamente para “viralizar” a informação para além daqueles espaços óbvios daqueles vivem o autismo todos os dias e fazer com que a sociedade neurotípica (ou seja, não autista) seja mais consciente (afirmação óbvia) e capaz de perceber quando se deparar com uma pessoa neurodivergente (ou seja, autista).
Entretanto, vi muitas manifestações de pessoas queixosas de que as outras pessoas (porque o problema é sempre o outro) não abraçam a “causa autista” ou são “indiferentes” porque não são atingidas pelo autismo. Vejo também todos os dias pessoas queixosas de que as outras não entendem as peculiaridades autistas e não têm a necessária empatia e capacidade de se comportar em situações cotidianas que só quem vive o autismo sabe como é.
Isso me faz refletir que inclusão é uma matéria que se enfraquece pelo nível de complexidade que carrega. Para incluir é preciso questionar “incluir quem?”. Eu vivo o autismo todos os dias, mas eu não vivo o que é ser cadeirante; não vivo o que é a esclerose lateral amiotrófica; não vivo a síndrome de down; não vivo a cegueira; não vivo a surdez; não vivo a mudez; não vivo a depressão; não vivo a divergência de gênero; não vivo o preconceito de cor; não vivo nada além do autismo.
E neste contexto me pergunto o que eu fiz de concreto pela causa da síndrome de Down; pela inclusão das pessoas sem os membros inferiores ou posteriores; pela inclusão das pessoas cegas, surdas ou mudas; por todas as demais pessoas que vivem em um mundo que lhes é hostil porque não adaptado para suas realidades.
E a conclusão é única: nada. Nunca fiz nada de concreto. No máximo posso dizer que fui empático com o outro e, quando necessário, busquei sua inclusão da forma que podia e sabia. Provavelmente, em inúmeras situações, agi errado e na maior parte das outras situações não me coloquei no lugar do outro.
Para voltar para casa neste dia 2 de abril desci um morro muito íngreme, cujo passeio público é cheio de degraus (quem mora em Belo Horizonte sabe exatamente do que estou falando). Em momento algum refleti que um autista pode descer este morro, mas um cadeirante não pode.
Estou pensando nisto somente agora, sentado na minha cadeira em minha residência, constituída por um apartamento que, para acessar, exige a subida de escadas que para este mesmo cadeirante não seria possível.
Pense, por sua vez, que talvez o cadeirante que se indigna porque é impossível se locomover por Belo Horizonte com dignidade (e ninguém dá a mínima para isso) nunca tenha parado para pensar quais são as dores e as agruras de ser autista em Belo Horizonte. Eis a complexidade da inclusão: são muitas por fazer, com pouco tempo e pouca gente para fazer tanto.
Então fica meu recado para o autista neste dia de conscientização do autismo: divulgue, oriente, conscientize as pessoas à sua volta. Faça a informação chegar ao máximo possível para que a sociedade seja cada vez mais inclusiva e compreensiva acerca da neurodivergência.
Entretanto, se puder, reflita também quantas outras pessoas você exclui todos os dias (ou simplesmente ignora) para entender que cada um fala de si e da própria dor. E que isso sirva para ser empático com aquela pessoa que te olha e diz na maior inocência: “Mas nem tem cara de autista!”.
A gente nunca sabe o que o outro vive (e que a gente ignora) e quão violenta pode ser a nossa indiferença. Como minoria silenciosa, deveríamos ser os primeiros a saber disso e cobrar menos do outro. Afinal, como dizem os cristãos, cada um sabe da cruz que carrega. E talvez a maior missão não seja informar todo mundo de tudo, pois é impossível, mas fazer do seu ambiente e de si mesmo um espaço de tolerância e inclusão com a diferença – não de si, mas do outro.