Por difícil que possa ser, é preciso manter a prerrogativa de que acreditar que a terra é redonda -  (crédito: Wikimedia Commons)

Por difícil que possa ser, é preciso manter a prerrogativa de que acreditar que a terra é redonda

crédito: Wikimedia Commons

O Congresso Nacional, depois de absurdos e longos 2 anos, apreciou um veto do ex-presidente Jair Bolsonaro sobre o denominado PL das Fake News. A iniciativa propunha criminalizar a disseminação de fake News e dispunha de uma série de medidas a respeito deste tema tão presente e tão nocivo para a sociedade.
 

Apesar de o tema ser delicado, seus efeitos perversos e muitas vezes utilizado para enganar massivamente a população, obter ganhos políticos e financeiros ou, pior, promover o linchamento moral e social de pessoas inocentes, obviamente a medida proposta era um fracasso em todos os níveis. Mais do que um fracasso, a norma era um convite ao arbítrio e à total perda de controle do Poder Judiciário brasileiro.
 

Entram aqui duas discussões importantes e que, como sempre, passam ao largo do palco político dos “especialistas de mídias sociais”, mais conhecidos como “meu político de estimação futebol clube”. A primeira discussão é sobre a lógica da “esquerda punitiva”, tema abordado no Brasil inicialmente pela criminóloga Maria Lúcia Karam, lá nos idos de 1996 (a ilustre pesquisadora tem visão).
 

Qual a lógica da premissa: a direita tem uma tendência de sustentar discursos de sistemas penais mais duros, aumento de penas, cumprimento de penas mais rígidos e ampliação do sistema penal. Vide, para tanto, a derrubada do veto à lei que proíbe as saídas temporárias e o quão comemorado foi para todos os setores da direita do país.

 



 
Por sua vez, a esquerda é sempre identificada com o “oposto”: flexibilização do sistema penal, visualização do sistema repressivo como um sistema social e não legal, busca de penas alternativas, desencarceramento e até abolicionismo penal. A premissa é o fato de que os sistemas penais, historicamente, foram utilizados como mecanismos de repressão a classes sociais marginalizadas e pouco ou nada representadas nos espaços de poder.
 

Ocorre que Maria Lúcia Karam identifica um movimento no Brasil (desde a década de 1990) e que era mero reflexo do mesmo movimento que ocorria em outros países ocidentais de uma esquerda que ascendia ao poder. O que se esperava desta esquerda? Redução de penas, flexibilização do cumprimento de penas, busca por penas alternativas e redução do sistema de persecução penal em geral.

 

 
E o que se viu desta esquerda? Uma profusão de normas penais que incharam de forma escandalosa o sistema de justiça criminal. O que se observou neste movimento inverso é que a chegada a estes espaços de poder levou à uma tentativa de aproveitar uma “oportunidade” para perseguir os históricos persecutores.
 

É neste contexto que surgem normas penais econômicas, tributárias, previdenciárias, contra a corrupção na administração pública, de condutas contra grupos minoritários, crimes ambientais, crimes contra a ordem consumerista e mais uma infinidade de normas penais. Em suma, o movimento foi oposto e o sistema de justiça criminal (no Brasil e em diversos países ocidentais) se tornou um grande “elefante branco”: enorme, pesado, difícil e caro de manter, lento e ineficiente.
 

Curiosamente, isso inflou o discurso da direita por uma ampliação do sistema de justiça criminal, fundado exatamente na sua ineficiência. Ou seja: é o famoso caso do cachorro que fica, loucamente, correndo atrás do próprio rabo e não entende por que, apesar de todos os esforços, não consegue sair do lugar e nem alcançar o seu objetivo.

 


O projeto em questão era exatamente expressão disso: uma tentativa de usar o sistema de justiça criminal para perseguir os persecutores. É a esquerda punitiva que, abandonando as suas premissas históricas, acredita, por ingenuidade ou por má-fé, que o sistema de justiça criminal seja justo, eficaz e capaz de dar cobro de condutas ilícitas praticas “na rua” cotidianamente.

 
Queria eu acreditar que já tínhamos ultrapassado a fase da crença ingenuamente infantil de que podemos contar com o Poder Judiciário para fazer algo que NÃO é da sua competência. Essa afirmativa é tão óbvia e tão assustadora para a maioria das pessoas, mas acredite, sem trocadilho nenhum, estou falando a verdade: não cabe ao Judiciário combater ilícitos e muito menos combater a criminalidade (vai ferver a sua cabeça com esta afirmação e me cobra que eu escrevo sobre isso depois...).
 


O segundo ponto é o da legislação simbólica. Esse trabalho já é da autoria do pesquisador Marcelo Neves, que publicou (em alemão... dorme com essa que ele é brasileiro) a teoria sobre a constitucionalização simbólica. Para desenvolver o tema, ele trata da legislação simbólica e é isso que me interessa aqui.

 
Legislação simbólica, para o autor, é aquela legislação que não serve para nada, não tem função na vida real e muito menos capacidade de alterar e impactar de fato na vida das pessoas. Ora, e porque se faria uma lei que não serve para nada? Por vários motivos.

 
Conforme Marcelo Neves, uma legislação simbólica pode servir para disfarçar a incompetência de um Estado para resolver um problema e dar a sensação (e aqui está o descolamento da realidade) de que algo está sendo feito. Quer um exemplo de legislação simbólica? Te dou agora.

 
Logo aí acima eu falei da legislação que veta a saída temporária de presos. Pois é. Essa norma veio porque um policial militar de São Paulo foi morto por um detento que estava em gozo da saída temporária. Não houve um estudo acerca da razão de existir da saída temporária e muito menos a intenção de buscar aperfeiçoar o instituto.

 



Também não houve a menor análise dos impactos da legislação no incremento da criminalidade no país. Na verdade, não houve nada! Apenas uma “resposta para a sociedade” para que o Estado finja que está fazendo alguma coisa em prol do cidadão de bem, quando na verdade não está fazendo nada.
 

O mais provável é que a norma amplie a criminalidade e seus nefastos efeitos sociais, mas não importa. O que importa é a sensação de que algo está sendo feito, para que os incautos, confortavelmente, deitem-se no travesseiro seguros de que “agora acaba essa bandalheira” e fiquem felizes pelo Estado que têm.
 

Pois bem, a lei das fake news era outra legislação simbólica. A proposta não dispunha de estrutura mínima para se materializar no mundo da vida. O texto foi feito com absoluta consciência de que a sua capacidade de se aplicar no mundo da vida é igual a zero.
 

Tudo era apenas para que alguns “ficassem tranquilos” de que agora haveria uma norma para combater as fake news, como se a norma fosse um pó de pirlimpimpim capaz de, em um passe de mágica, extirpar da nossa realidade os ilícitos que nos assombram. Nada mais evidente de que a norma nasceu para não existir de verdade, mas para sustentar discursos em prol de promessas que jamais serão cumpridas.

 


Não fosse o paradoxo daqueles que sustentam a validade do projeto e o problema crônico de eficácia de uma norma absolutamente incapaz de alterar a realidade, ainda há um último problema. Não um ponto para ser listado, mas para ser pensado.
 

Quando a proposta busca punir a mentira, ela falha miseravelmente em dois pontos: primeiro, definir o que é a verdade; segundo, definir quem define o que é a verdade. Interessante aqui que, normalmente, a direita tende a tratar a verdade como algo absoluto e a esquerda trata a verdade como algo relativo.
 

Não por outra razão, um dos grandes temas de combate da direita política é a luta contra o que eles denominam de “relativismo moral”. Fazendo um raciocínio às avessas, parece que a premissa é de que existe uma moral absoluta que o relativismo é uma forma de corrupção da moral.

 

 
Neste cenário eu vou ficar com a esquerda. Eu sei que é cansativo, mas me acompanha: 1. Deus é o único senhor e criador; 2. Oxalá é a entidade suprema da espiritualidade; 3. Shiva é uma das bases da tríade de divina; 4. A única escritura sagrada é o Alcorão.
 

Qual frase é verdadeira e qual é falsa? Se formos adultos, racionais e minimamente humanos, vamos compreender que cada uma dessas frases nega a outra e, ao mesmo tempo, são verdadeiras. Uma nega a outra porque a premissa de uma nega a premissa das demais e cada uma é verdadeira porque reflete a perspectiva de verdade daquele que a reproduz.
 

Aí você pode pensar: você não entendeu nada, Hudson, estamos falando de ciência e não de religião. Se a premissa for essa, podemos alterar as frases por: 1. A terra é plana; 2. Aquecimento global não existe.
 

Eu, Hudson, tenho um misto de desgosto, pesar e uma pitada boa de ira por quem acredita que a terra é plana e que aquecimento global não existe. Mas isso não pode levar à prerrogativa de eliminar a sua capacidade de fala, por absurda que seja.

 

 

Esse é o drama de se viver em uma democracia: é preciso conviver com terraplanistas sem prendê-los por isso. Isso também vale para quem chama o Lula de ladrão e quem chama o Bolsonaro de genocida.
 

Entender isso nos ajuda a entender que não é possível entregar na mão de “César” o monopólio da produção da verdade e a prerrogativa de taxar de mentira aquilo que não concorda. Aqui, voltamos à falha estrutural da esquerda punitiva: se o sistema de justiça criminal é uma superestrutura moldada para punir os pobres (como bem sintetizou Loïc Wacquant), não vai ser criando leis para punir os ricos que isso vai mudar.
 

A mudança é pelo amadurecimento da sociedade. É um sistema social que precisa de investimento e tempo para se consolidar. É preciso que as pessoas desenvolvam a capacidade de discernir o que é verdade do que é fake e tenham a capacidade de não se contaminar com informações propositalmente inverídicas.
 

Até lá, os danos à honra, ao patrimônio e à imagem já possuem mecanismos legais de proteção. Nestes casos, a mentira é meio e não fim em si mesma, de forma que os danos que geram já possuem instrumentos legais de reparação.
 

Trocando isso tudo em miúdos: é mais lógico conviver com terraplanistas do que correr o risco de ser governado por um terraplanista com poder de prender quem é terrabolista.