Semana passada, enquanto discutíamos calorosamente sobre a maconha, ocorreu o 12º Fórum Jurídico de Lisboa que, apesar do nome, é brasileiríssimo. Já se vão 12 anos que o Ministro do STF Gilmar Mendes, por meio do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - /IDP (do qual o Ministro é fundador), promove este fórum. Ocorre que esse fórum não é assim um fórum convencional, desses que estamos acostumados em uma faculdade de direito.
De regra, esses fóruns têm um monte de gente falando sobre temas específicos e o ouvinte vai com uma perspectiva de uma grande loteria. Há palestras sensacionais, que valem um semestre inteiro de faculdade, com ideias novas e que despertam na gente aquela vontade de estudar um assunto. Há outras horríveis, com uma dose enorme de pedantismo e um monte de mais do mesmo que dá um sono sem fim.
Só que isso é o dia a dia dos fóruns jurídicos. Aqui, estamos falando de um fórum jurídico (foca no jurídico) que reúne políticos, como deputados (incluindo o presidente da Casa), senadores (incluindo o presidente da Casa), ministros de Estado, ministros do TCU, empresários dos maiores conglomerados industriais e financeiros do país e mais uma galera dessa trupe. O último levantamento que vi dava conta de cerca de 160 autoridades.
Fico de cá imaginando o incauto estudante de direito se perguntando por que o presidente de um dos maiores conglomerados financeiros do país estaria interessadíssimo em ouvir o desenvolvimento das últimas teses sobre globalização e seus impactos nas transformações jurídicas e digitais. Sim, esse é um dos eixos temáticos do evento.
Para quem já passou de certa idade, fica aquela sensação esquisita de que não soa muito institucional que esse tanto de gente que dita os rumos do país se desloque para o outro lado do oceano para sentar à mesma mesa. Soa ainda mais estranho que muitas dessas pessoas tenham problemas pendentes de decisão no STF ou outras instâncias do Poder Judiciário.
Fica ainda mais difícil de entender quando se percebe que essa galera vota o orçamento, que contém o aumento salarial e de benefícios dos magistrados do STF e, por efeito cascata, todos os outros magistrados do Brasil. Complica muito mais não entender exatamente de onde vem o dinheiro que financia tudo isso, quem pagou as passagens, quem bancou a estrutura e quem, em geral, patrocina tudo isso.
É difícil saber qual é o cenário mais distópico: com o poder público pagando, ou seja, nós mesmos; ou com dinheiro privado pagando, ou seja, alguém que não sabemos quem.
Fato é que o velho Milton Friedman tem uma frase famosa e que até hoje ninguém conseguiu negar: “não existe almoço grátis”. Com exceção de relações de afeto pessoal muito genuínas, se alguém te pagou um almoço, ou o preço dele está embutido em alguma coisa ou ele vai te cobrar depois. E como eu tendo a acreditar, até que me provem o contrário, que os ministros do STF, STJ, TCU, de Estado, deputados, senadores e etc. não pagaram as próprias passagens e estadias, impossível não imaginar o preço desse “almoço grátis”.
Friso que eu não estou falando de corrupção em si, como podem algumas pessoas estarem pensando neste momento. Estou falando de uma relação que pode, por um momento no cafezinho, impactar na imparcialidade do julgador. É simplesmente isso.
Vou te contar uma técnica que já vi inúmeras vezes sendo usada em processos por membros do Ministério Público e advogados e tenho certeza que você vai entender o movimento: imagina um processo em que a prova é bem ruim. Você (e esse “você” é fictício, pois eu sei que todos os meus leitores são santos ungidos...) olha e sabe que não tem muita robustez no que tem ali e a chance de dar errado é relevante.
Mas tem um detalhe: você tem uma prova ilícita. Você sabe que ela é ilícita e não pode ser usada no processo. O que você faz? Junta a prova ilícita no processo! A outra parte se manifesta de forma veemente sobre o absurdo do documento, a violação de todos os direitos fundamentais possíveis e imagináveis e o atropelo de todas as normas procedimentais mais elementares do direito.
O juiz olha (e aqui está o ponto) e concorda que a prova é ilícita, determinando o seu desentranhamento dos autos. Não é mais uma prova do processo. A outra parte se infla, fica feliz, afinal o direito foi corretamente aplicado e a vida vai seguir como antes.
Será? A experiência mostra que não. A prova foi retirada, mas o juiz viu, lembra? Se ele viu, então a psique dele está contaminada com aquele elemento, ainda que ele não “exista” mais. Quando for julgar, ele vai olhar a prova que está nos autos, mas com o olhar de quem está contaminado com a prova que não está nos autos.
O resultado você sabe: aquela prova mais ou menos se torna uma prova robusta e a decisão vem exatamente como se queria que ela viesse. Percebeu o movimento? A captura da psique do julgador é uma das tarefas mais árduas de um processo e, por vezes, são utilizados meios pouco ortodoxos para se chegar neste objetivo.
E aí eu volto no começo: quantas pessoas têm a possibilidade de se sentar lado a lado, para uma conversa amena e amistosa, com um ministro do Supremo Tribunal Federal? Quantos empresários no Brasil, com inúmeros processos pendentes na Justiça, podem sentar à mesa com o Judiciário para discutir suas perspectivas sobre o mercado, desenvolvimento, globalização e suas tomadas de decisão?
Será crível que, neste contexto, no momento em que as teses dessas pessoas chegarem ao plenário do Tribunal serão apreciadas como as minhas e as suas, reles mortais? Ou será que a apreciação ocorrerá como no caso daquele magistrado que viu a prova contaminada, ainda que ela não esteja lá no processo? Pois é... neste ponto que a fica o questionamento do quão rudimentares e personalistas ainda são as nossas instituições republicanas.
Preocupamos muito com alguns pontos, mas parece que não chama a atenção a facilidade com que alguns agentes (que deveriam manter distância de segurança) deixam suas portas abertas para se contaminar com elementos que fatalmente atingirão as convicções que serão posteriormente materializadas em votos. E muitas vezes esses votos determinam o comportamento de um país inteiro, de modo a concluir que o almoço pode ser muito bem pago.
O Metallica, sem dar a menor trela para a nossa existência, publicou no simbólico 07/09/1988 (nossa última “independência” sob mordaça institucional) o disco “...and Justice for All”, cuja música que dá título ao disco serve muito para o contexto: “I can’t believe the things you say / I can’t believe, I can’t believe the price you pay”.