O Brasil é um país muito pouco letrado. É um fato, infelizmente. Quando se considera a população de analfabetos funcionais, o resultado é ainda mais dramático.
Segundo o IBGE, em 2022, dos 163 milhões de brasileiros acima dos 15 anos de idade, 11,4 milhões eram analfabetos. O número de analfabetos funcionais é incerto, pois estes analfabetos passaram pelo sistema educacional formal e, muitas vezes, possuem diploma de ensino fundamental ou médio.
Entretanto, a estimativa é de que o analfabetismo funcional alcance cerca de 29% da população brasileira, conforme dados divulgados pelo Instituto Pró-Livro em 2021, o que significa o absurdo número de 60 milhões de pessoas.
Na outra ponta desta tabela, temos as pessoas com curso superior. Conforme o Censo da Educação Superior publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2022, das pessoas entre 18 e 24 anos, apenas 4% já concluíram o curso superior. Este número corresponde a cerca de 1 milhão de pessoas.
Já deu para entender que entrar nos dados de quem possui pós-graduação, mestrado ou doutorado pode ser um pouco constrangedor, então é melhor deixar essa informação subentendida. De toda forma, a conclusão é o que importa: temos uma parcela muito grande da população com acesso apenas à educação básica ou à educação nenhuma.
Além dos dados oficiais, acrescentaria alguns dados das vozes da minha cabeça para que cada um reflita: me constrange um pouco observar inúmeras pessoas que conheço com formação superior e que desconhecem informações básicas que se deveria (no mundo ideal) esperar que uma pessoa letrada soubesse na ponta da língua. A referência é a situações elementares mesmo, como por exemplo a diferença entre Legislativo, Executivo e Judiciário; o que é uma Constituição; o que é uma estatal; porque o governo deve controlar a inflação; o que significa juros compostos; como funciona um banco; como funciona um cartório de títulos e documentos; o que são tributos; porque o locatário que paga o IPTU; o que significam os descontos no seu contracheque etc.
Ou seja, conforme pesquisa do “Instituto Vozes da Minhas Cabeça”, a situação é sensivelmente pior do que os números oficiais indicam, pois mesmo pessoas com formação superior (e, portanto, letradas) possuem dificuldade imensa em “navegar” pela linguagem e conceitos da base de funcionamento de instituições públicas e privadas que impactam diretamente a nossa vida. Logo, a linguagem é uma barreira quase universal, a demonstrar o fosso dramático com o qual lidamos diariamente.
Neste contexto, surge um movimento em todo o poder público para instituir a “linguagem simples”, que nada mais é do que a tentativa de tornar os documentos públicos mais acessíveis para a população leiga. O Poder Judiciário, por meio do CNJ, lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, com o mesmo objetivo de tornar os trâmites processuais mais palatáveis para o leigo (e aqui, facilmente, é possível incluir qualquer pessoa sem formação jurídica).
No Judiciário foi muito fácil “encaixar” este movimento, visto que a formação jurídica carrega, de forma inevitável, um “dialeto” inteiramente novo e dissociado da realidade “comum” de uso regular nas demais relações sociais. Ou seja, todo mundo concorda que a linguagem jurídica é desnecessariamente difícil e que poderia ser mais objetiva.
Por um lado, precisamos concordar que há claramente um exagerado rebuscamento (por vezes falso e até forçado) na linguagem jurídica que precisa ser combatido. Um formalismo exagerado, uma miríade de expressões em latim absolutamente desnecessárias e ainda a “criatividade” do dia a dia para tentar tornar difícil o que é simples.
Convenhamos que trocar “Supremo Tribunal Federal” por “Pretório Excelso” ou “Ministério Público” por “Parquet” é gostar de complicar o que podia ser simples. Neste ponto, observo até uma tentativa tola de parecer mais inteligente do que se é realmente e até uma forma muito pouco republicana de exercer poder.
Afinal, dominar uma linguagem desconhecida da maioria é uma forma de exercer poder em relação aos demais. Isso explica porque tem tanta gente formada em direito com um trato insuportável e uma incapacidade bizarra de falar algo de forma simples e objetiva.
Por outro lado (e sempre tem outro lado), preocupa que a linguagem simples se torne uma linguagem pobre. A linguagem simples pode pressupor o abandono de jargões e expressões excessivas, mas não deve abdicar da técnica e da mínima padronização semântica.
Reconhecer que é papel do profissional do direito “simplificar” as tramitações processuais para o leigo é completamente diferente de minar o padrão de linguagem jurídica adotado pelos profissionais no exercício das suas funções. Além disso, viver o direito é aprender todos os dias que, ao contrário do que pensa o seu tio formado em engenharia, as questões jurídicas são muito complexas e não podem ser resolvidas com um simplório “era só matar”.
Essa complexidade precisa de uma linguagem desenvolvida para conseguir “navegar” por essas nuances e apreender, da forma mais artesanal quanto possível, as peculiaridades de uma situação concreta. Se a gente simplificar demais ao ponto de empobrecer, temo que isso se perca e, por arrastamento, a qualidade das apreciações jurisdicionais – que já andam agonizando em tempos de produção judicial de massa.
A língua portuguesa tem um nível de complexidade absurdo e só os estrangeiros que vivem aqui para nos mostrar, com o olhar de fora, como a nossa linguagem é formada em bases dificílimas de aprender e aplicar. Neste contexto, a tentativa de simplificar demais a linguagem para alcançar a todos pode implicar um empobrecimento da língua e uma perda no longo prazo da qual desconhecemos as consequências.
É preciso ser compreensivo com as pessoas que desconhecem uma linguagem técnica. Assim como eu fico muito satisfeito quando o médico me explica o resultado de um exame de uma forma que eu entenda, tenho a obrigação de explicar para o meu cliente médico como funciona um trâmite processual de uma forma que ele entenda.
Assim como eu gostaria que a dona da horta, que nunca pisou em uma escola na vida, tenha paciência comigo para explicar a diferença entre um açafrão e um alecrim, tenho a obrigação de adequar a minha linguagem para explicar a ela se o caso dela “deu certo” ou “deu errado”.
Em nenhum desses casos é necessário abdicar da principal ferramenta de trabalho do direito - que é a linguagem. Talvez ensinar a adequar a linguagem seja a forma mais efetiva de torna-la simples quando preciso, mas sem perder de vista a atenção para que esse movimento não implique em boicote à linguagem a pretexto de proteger hipossuficientes.