Os atletas brasileiros que conquistaram o tão sonhado pódio olímpico em Paris foram protagonistas indiretos de um dos exemplos mais dramáticos do emburrecimento coletivo que as redes sociais podem promover. Pessoas sérias, e que de fato tinham a intenção de suscitar o debate sobre os ônus tributários que o brasileiro suporta, foram às redes para calcular quanto as estrelas do atletismo brasileiro teriam que entregar de bandeja para leão.

 

Os valores, obviamente, assustaram, pois a alíquota do IR é muito alta. Quando a base de cálculo aumenta, qualquer ser humano minimamente sensato fica meio tonto depois de fazer a conta.

 

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A partir daí começou o terror. Primeiro, opositores do governo começaram a espalhar na internet que o governo Lula (como se fosse o único e perene governo deste país) estava tomando o suado dinheiro conquistado pelos atletas, já tão desvalorizados. Neste momento, entram em campo as torcidas organizadas meu político de estimação futebol clube 1 contra a meu político de estimação futebol clube 2 e começam um quebra-pau na internet para descobrir quem sangra mais os atletas brasileiros.

 



 

Obviamente que, se parássemos aqui, já seria desesperadoramente trágico o suficiente. Entretanto, nós estamos no Brasil e nestas terras absolutamente tudo pode piorar sempre. Nunca desafie um brasileiro em questões envolvendo governo que a gente inventa até uma roda nova para deixar qualquer telespectador mais perplexo.

 

Pois bem, o governo Lula, vendo esse quebra-pau todo e “sensível” às redes sociais, teve uma ideia brilhante: “vamos ali violar a Constituição para agradar as massas”. Daí me solta uma Medida Provisória (para valer de imediato) para isentar de IR os prêmios recebidos pelos atletas medalhistas olímpicos.

 

 

Há muitas camadas de desespero para dissecar neste episódio, mas eu vou me concentrar naquelas que são mais importantes na minha cabeça agora. Como a minha cabeça está doendo, não confie muito no critério de seleção, mas de qualquer forma, estes pontos são relevantes.

 

A Constituição, esse texto cada vez menos usado e menos considerado, tem um texto lá que serve bem para o caso. O art. 152, II, diz que é vedado, dentre outras coisas, “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

 

 

Você vai concordar comigo que o texto é fácil de entender: ganhou dinheiro, o Estado tributa sem perguntar a origem. E se você está muito apaixonado pelos atletas olímpicos e acha isso errado, lembra do ditado: “se tem placa, tem história”. Esse texto não está aí desde 1988 à toa (incrivelmente a CR ainda tem partes originais depois de 132 emendas).

 

Antes da Constituição de 1988, havia castas profissionais, como magistrados, por exemplo, que já foram isentas de imposto de renda. Imagina um magistrado, um trabalhador da base da pirâmide social deste país, claramente merece não suportar os ônus do imposto de renda, coisa que o vendedor de loja que faz seus R$ 4.000,00 por mês obviamente tem que pagar.

 

 

Ficou fácil de entender, certo? Sem a regrinha, quem tem lobby e poder de fala ganha o presente e transfere a fatura para quem não é convidado para o jantar. A Constituição está certíssima e a Medida Provisória é flagrantemente inconstitucional.

 

Eu poderia parar o texto por aqui, pois juridicamente a questão está resolvida. A MP não pode valer porque a Constituição não permite a existência de castas profissionais liberadas de obrigações tributárias a todos impostas.

 

Entretanto, impossível não ficar chocado com a capacidade de um discurso raso e muito pouco inteligente, travado em hashtags, comentários e curtidas, ser capaz de mobilizar governos ao ponto de moverem a máquina do Estado desta forma. É bizarro que algumas pessoas culpem um governo “da vez” pelo que foi construído no país nos últimos 40 anos.

 

 

É ainda mais bizarro ver este governo da vez buscar agradar a claque, sem qualquer critério jurídico e técnico, apenas para “ganhar” o debate das redes. As redes sociais têm se mostrado um palco dantesco de desinteligência, um convite à ignorância, à informação fácil e, consequentemente, errada.

 

Surrealmente, este é o palco que tem pautado as decisões públicas e governamentais, evidenciando que, se nada for feito, caminharemos a passos largos para um fosso institucional sem fim. A educação digital é urgente e o cenário é de temeroso desespero, pois as redes pautam as burrices cotidianas e, ao mesmo tempo, as decisões, as manifestações, os posicionamentos e, obviamente, as eleições.

 

 

As eleições municipais estão aí batendo às nossas portas e, de novo, vemos como a tomada de decisão eleitoral está perigosamente se vinculando à influência de quem lacra mais nas redes. Oremos.

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