A eleição brasileira de 2022 foi a mais questionada de todos os tempos. Desde a instituição do sistema de voto eletrônico, a cada eleição (que ocorre de 2 em 2 anos) surgem várias teorias da conspiração sobre fraude às urnas eletrônicas e manipulação de votos.
Há também inúmeras ideias mirabolantes sobre anulação de eleições e formas fantasmagóricas de sabotar o processo eleitoral. Até aí, ok. A gente parece que tem uma dificuldade enorme de levar coisas sérias a sério.
A coisa começou a pegar quando uma PEC do então deputado federal Jair Bolsonaro tramitou até a sua publicação, já durante a sua presidência. O objeto da PEC: voto impresso e auditável. A ideia era muito simples: para garantir a lisura das votações, a urna eletrônica tinha que cuspir um papelzinho com a indicação da pessoa votada para que o eleitor pudesse conferir que não teve fraude na votação.
A proposta pode até ser bem intencionada, mas era muito pouco realista. É preciso ter autocrítica para entender que as premissas precisam ser compatibilizadas. Se uma pessoa afirma que um sistema é fraudável, obviamente uma impressão também o será. Isso para começar.
Não fosse só isso, esse ingênuo papelzinho nos transportaria para uns 150 anos atrás, com os famosos votos de cabresto devidamente institucionalizados. Imagina lá no morro do Pavão Pavãozinho, no RJ, regiamente controlado pela milícia, como seria tranquilo o dia de votação. Cada cidadão iria ter uma parada obrigatória em um ponto específico para verificação sobre a sua “sabedoria eleitoral”.
Se sabe votar direitinho, conforme o bem e o interesse público que lhe foi apresentado no curso do processo eleitoral, vai para casa feliz. Se é uma pessoa dispersa, pouco atenta aos reais interesses públicos e não observou as adequadas orientações apresentadas durante a campanha, escorrega na vala e nunca mais afeta os bons rumos do país.
Acho que deu para entender que, na realidade brasileira, a ideia de um voto impresso pode ser um pouco roubada. Tem mais uma lista de argumentos que dava para desenhar, mas não estou interessado neles. Quero falar de 2024.
Recentemente houve eleições na Venezuela e qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e que acompanhe razoavelmente o noticiário internacional sabe que as eleições foram fraudadas. E sabe porque foi constrangedor, dado o descaramento com que o Estado Venezuelano usurpou o resultado das urnas.
E sabe o mais legal? As urnas lá são eletrônicas com voto impresso e auditável! Sensacional, não é! Fraudaram a urna que tem o sistema que o grupo capitaneado por Jair Bolsonaro disse que seria a saída para evitar fraudes eleitorais no Brasil.
Obviamente que você, meu amigo bolsonarista, neste momento está fulo da vida procurando explicações para tirar a legitimidade da minha afirmação. E você, meu amigo esquerdista, está se achando como o dono da verdade (o que seria um paradoxo, dadas as relações da esquerda com a gestão venezuelana). Como sempre, vivendo no meu intento de vida de irritar a gregos e troianos, eu acredito que vocês dois estão rotundamente errados.
A afirmação de que uma eleição pode ser fraudada é uma obviedade. Estudar um pouco de História ajuda a perceber que eleições limpas são algo raro na História do mundo e o Brasil não ficaria de fora. Afirmar que urnas eletrônicas são fraudáveis é outro lugar comum e a resposta é tão óbvia quanto: se o sistema da CIA é fraudável, obviamente que qualquer outro sistema pode ser também.
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E daí? Vamos fazer o quê? Criar um sistema mais frágil ainda? A resposta para estas perguntas é que precisam ser enfrentadas. O problema é que levar esta discussão para além das premissas rasas leva a desconfortos de ambos os lados e aí a conversa para, pois o importante é brigar e defender o seu político de estimação.
Se qualquer sistema possui potencial de fragilidade, então o que se precisa aprimorar são os mecanismos de proteção para fortalecer o sistema. Você sabe que hoje há um potencial real de que o aplicativo do banco que está instalado no seu celular seja atacado, mas você não desinstala o aplicativo e volta a andar com dinheiro no bolso.
Por que isso? Porque à medida que os ataques aparecem o sistema se fortalece, aprende, se ajusta e vai melhorando a experiência do usuário. E olha que o aplicativo do banco está conectado na internet, o que a urna não está.
Se hoje há mais transparência na gestão pública isto se deve ao fortalecimento de órgãos de controle, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Ou seja, o sistema continua o mesmo, mas os mecanismos de defesa estão melhores.
Aqui é a mesma coisa: o Brasil, aos trancos e barrancos, conseguiu manter e aprimorar a Justiça Eleitoral. Ao contrário do que se propaga, 84 países pelo mundo possuem uma Justiça Eleitoral, o que ajuda a evitar que o lobo cuide das ovelhas. É a maioria do mundo? Não. A pergunta é: a maioria do mundo é democrática? Fica a dica.
Além disso, ao contrário do que se pode imaginar ingenuamente, a sabotagem em uma eleição pode ocorrer de inúmeras formas. E fraudar um sistema eletrônico é a forma mais complexa e menos apta a alcançar este fim.
Frauda-se uma eleição criando barreiras para impedir pessoas de votar; frauda-se uma eleição impedindo a oposição de disputar; frauda-se uma eleição concedendo benesses com dinheiro público para determinados segmentos sociais; frauda-se uma eleição criando informações falsas sobre o oponente; frauda-se uma eleição utilizando a máquina do Estado para perseguir opositores; frauda-se uma eleição comprando votos, comprando aliados, fazendo caixa 2 e mais o que a sua imaginação permitir.
Ou seja, o processo eleitoral é um momento delicado em um país que se pretende democrático e precisa de observância. Uma questão que a História está cansada de nos mostrar é que, de todos os regimes políticos que existem no mundo, a democracia é o regime mais frágil. Periodicamente a democracia é ameaçada e precisa de que todos estejam em vigília para evitar que seja achacada por aqueles que pretendem usar do Estado para destruir o Estado.
Eleição por eleição, temos várias todos os dias ao redor do mundo com diversos modelos. Temos a eleição da Rússia, onde Vladimir Putin ganhou com 88% dos votos; ou a eleição de Ruanda, onde Paul Kagame venceu com 99% dos votos. Os exemplos são muitos e nos mostram que onde o voto é depositado (em papel ou em bits) é o menor dos problemas para garantir a legitimidade do poder.
A questão é escolhermos se vamos continuar brigando para ver quem é o torcedor mais tonto ou se vamos levar a sério a fragilidade do jogo democrático e parar de normalizar as verdadeiras fraudes eleitorais que ocorrem em todos os pleitos. Enquanto a compra de votos e o uso da máquina for “normalizado”, o orçamento for secreto, o voto for decidido com base no compadrio e a fórmula da vitória eleitoral for vinculada à melhor performance da equipe de marketing, não há urna que dê jeito.