O Supremo Tribunal Federal fez, recentemente, o que deveria ter feito há muito tempo: mandou parar a distribuição das emendas do orçamento secreto. Obviamente que há de se respeitar os demais poderes, mas a inconstitucionalidade da postura do Legislativo é de uma flagrância que faz doer os rins.
Todo dinheiro público tem uma premissa basilar desde que se pensou na estruturação do orçamento na Constituição de 1988: é preciso controlar como este dinheiro entra, quem pode gastá-lo, como usá-lo e quais os documentos são necessários para lastrear a queima do erário.
Se tem uma coisa importante na Constituição é o orçamento. Basta pensar que há um título inteiro só para falar da captação das verbas públicas (direito tributário) e das regras de execução destes valores (direito financeiro). Além disso, há inúmeras regras sobre o uso do dinheiro público, sendo bons exemplos a figura do concurso público (dinheiro com pessoal) e as licitações (dinheiro para aquisição bens e serviços).
Siga o nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia
Entretanto, diante de governos com fraquíssima influência sobre o legislativo (estou falando de Dilma Roussef e Jair Bolsonaro), a importante missão legislativa de organização, aprovação e indicação de direcionamento do orçamento foi minada por interesses corporativistas. A pretexto de garantir a tal governabilidade, os chefes do Executivo citados foram “encantoados” para “abrir a torneira” do orçamento para benefício dos parlamentares!
É curioso isso, mas há uma verdadeira inversão da ordem das coisas, muitas vezes para fazer politicagem (e não política), que culminou por estrangular o Executivo. Neste contexto, a situação do gestor é dramática.
Ouviu-se no noticiário que o então Presidente Jair Bolsonaro “entregou” o seu governo para o centrão. Ocorre que não havia opção: ou entregava ou o governo seria simplesmente paralisado.
Não há aqui qualquer juízo de valor, mas uma análise pragmática. A então Presidente Dilma Roussef achou, ingenuamente, que poderia bater de frente com o parlamento e o seu destino todos conhecem. Bolsonaro conhecia a cartilha e a rezou religiosamente para se manter no cargo e obter as aprovações necessárias, visto que, ao contrário do que o nosso leigo eleitor pensa, quem manda mesmo no Brasil é o Legislativo e não o Executivo.
No entanto, o governo Bolsonaro deu início a um patamar nunca antes visto deste mecanismo: o orçamento que ninguém sabe de quem é. As emendas de relator é o nome pomposo para orçamento secreto, mecanismo que permite a parlamentares direcionarem dinheiro para lugares específicos sem se expor ou ter que dar explicações, visto que seu nome não aparece no portal.
Ou seja, o orçamento secreto quebra a lógica básica da Constituição relativa à prestação de contas pelo uso de dinheiro público, pois esconde o “quem gastou”. A concepção da criança deve ser atribuída a quem de direito: Luiz Eduardo Ramos, general do Exército que, de forma inacreditável, ocupou o cargo de Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República do governo Bolsonaro estando ainda na ativa.
Talvez o Brasil seja o único país do mundo que a bizarrice de se ter um militar da ativa ocupando cargo de ministro é tolerada, com exceção aos governos que são integralmente militares e, portanto, não se parecem, nem com maquiagem, com democracias. E, obviamente, é mais uma mostra de que muitos membros do Exército brasileiro têm pouquíssimo apreço pelo estado de direito e alguma ojeriza à democracia.
Lula ganhou as eleições criticando o orçamento secreto. Rezou a cartilha da oposição e falou como era um absurdo e que se deveria lutar contra o orçamento secreto. Obviamente, durou só até a “página dois”.
Assim como Bolsonaro, Lula conhece a cartilha e não ia bater de frente com o Congresso para tombar na esquina seguinte. De novo, somente o nosso incauto membro da torcida organizada “meu político de estimação futebol clube” que acha que o chefe do Executivo manda muito neste país. Todo o resto sabe que o chefe de Executivo aparece muito, fica famoso, é o centro das atenções e, ao mesmo tempo, precisa dar a máxima atenção a cada tremor legislativo para garantir a sua capacidade de minimamente levar uma gestão adiante.
No legislativo federal já se perdeu as contas de quantas vezes o Legislativo barrou ações do Executivo e, no dia seguinte, foi à imprensa denunciar a inação do governo e a incompetência do seu gestor. É assim que a banda toca e o nosso membro da torcida, de regra, não manja muito de ligar os pontos.
É neste cenário que, lá atrás, no início da concepção deste descalabro, deveria ter o STF barrado tudo liminarmente. E ações para isso tinham 4 com o mesmo objeto e pedido. Entretanto, ao contrário, a liminar concedida foi limitada e, mais absurdo ainda, a decisão proferida em dezembro de 2022 simplesmente não foi cumprida.
Sim meu amigo leitor, o STF declarou o orçamento secreto inconstitucional em dezembro de 2022 e sabe o que aconteceu? Nada... mudaram o nome e tocaram a vida como se não houvesse amanhã. Tecnicamente, Lula não deveria ter lidado com orçamento secreto, mas, como em terras tupiniquins até o passado é incerto (quiçá o futuro), Lula não só executou as emendas secretas como consentiu com o aumento do seu montante.
A falta de seriedade do brasileiro é uma mistura de Macunaíma, Zé Carioca e João Grilo: ora gera heroísmos e ora gera golpes com a mesma roupa.
Agora o STF chamou todo mundo para dar cumprimento à decisão e causou este furdunço todo, tendo inclusive o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, dado encaminhamento a PEC’s que, teoricamente, limitam o poder do STF. Ele nega, obviamente, mas é bem nítido como o espírito da 5ª série pauta muitas das mais importantes decisões deste país.
Talvez fosse o STF mais enfático no início, esse labirinto não tinha ganhado o corpo e a musculatura que ganhou. Entretanto, é preciso lembrar que o STF, para o agrado de alguns e desagrado de outros, é um tribunal constitucional que exerce funções jurisdicionais e também políticas.
Logo, o contexto é um elemento que pauta boa parte das decisões tomadas, o que não ocorre com tanta intensidade em outros órgãos jurisdicionais. O orçamento secreto estava exatamente neste contexto: já havia muitas acusações de perseguição do STF ao então presidente Jair Bolsonaro e, aparentemente (pois não tenho provas disso), agir de forma incisiva no início poderia gerar reações ainda mais fortes.
Pois bem, independente da causa, o fruto está aí e cabe ao espectador desta obra tragicômica descobrir se desta vez alguma coisa vai acontecer de fato ou se a Maria, que virou Joana, vai virar Inês e, eventualmente, morrer por aí.