O olhar enviesado impede a visão nítida -  (crédito: Pexels)

O olhar enviesado impede a visão nítida

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Nessa segunda, 7 de outubro de 2024, fez um ano do fatídico sábado em que membros do Hamas invadiram o território de Israel a assassinaram de forma brutal centenas de inocentes. Além das vítimas fatais, tantos outros ainda foram feitos de reféns, estando alguns até hoje em cárcere; outros foram mortos, e uns poucos, resgatados.

 

 

A resposta de Israel contra Gaza foi avassaladora e permanece em curso até hoje. Entretanto, hoje eu não quero discutir o conflito em si, até porque já me posicionei em outra oportunidade, de modo que me interessam alguns pontos que nos tocam aqui no Brasil.

 

O primeiro deles é o fato de que esta história é muito mais antiga do que a gente costuma imaginar, e me chama bastante atenção a capacidade que temos de desconsiderar o poder da história. Recentemente vi que historiadores são os profissionais com o maior índice de desemprego no país, beirando os 40%.

 

É uma cifra triste e que mostra nosso desprezo com nossa própria história (imagine em relação à história do mundo). Países que têm um apego muito forte à própria história e que investem na preservação desta história, como França, Alemanha e Itália, para citar poucos, já convivem com desafios de barrar retrocessos históricos (como o retorno do nazismo).

 

O cenário, obviamente, fica mais conturbado em terras tupiniquins, onde muito pouco se sabe, de maneira geral, sobre acontecimentos fundamentais da formação do nosso país e do nosso povo. Recentemente, comemoramos o bicentenário da primeira Constituição do Brasil, a Constituição Imperial de 1824, e simplesmente ninguém falou nada!

 

 

Não houve qualquer movimento por parte do estado ou qualquer iniciativa privada para reforçar a memória do primeiro movimento constitucional brasileiro, fruto da nossa independência de 1822. Ainda que capenga, com todas as nossas peculiares tribulações, é algo cujas consequências refletem até hoje em nossas vidas, e quase ninguém sabe disso.

 

Esse “desapego” histórico ajuda a explicar (penso eu) nossa facilidade em pensar, propor e aceitar respostas simples (muitas vezes simplistas) para resolver questões complexas, como, por exemplo, definir quem é “herói” e quem é “vilão” em algum evento histórico.

 

Isso me leva ao segundo ponto, que também me chama atenção. Observando manifestações de pessoas influentes, de anônimos, gente que conheço e não conheço, acabo por concluir que ainda padecemos de um déficit interpretativo que data do medievo. Me refiro a uma doutrina denominada “maniqueísmo”, amplamente difundida no Império Romano e que permeou boa parte da construção do conhecimento medieval.

 

Tivéssemos nós estudado um pouco mais de Tomás de Aquino, talvez entendêssemos com mais clareza a influência do medievo na nossa visão de mundo. De toda forma, em linhas muito simples, o maniqueísmo é a doutrina que parte da premissa de que existe um conflito entre a luz (o bem) e a treva (o mal), e este conflito pauta a existência humana.

 

 

Por esta doutrina, ou algo é bom ou é mau. É neste conflito que se baseiam as histórias de heróis que ouvimos, os contos dos Irmãos Grimm, muitos dos filmes que assistimos e dos livros que lemos. Há um herói (e ele é essencialmente bom), cuja função é salvar as pessoas, o mundo ou qualquer bem que mereça ser preservado. E há um vilão (e ele é essencialmente mau), cuja função é matar pessoas, destruir o mundo ou qualquer coisa que mereça ser preservado.

 

Olhando assim, parece infantil, certo? Mas é assim que somos ensinados a pensar. E você deve estar se perguntando agora: que raios essa ladainha tem a ver com o título desta coluna? E eu respondo: esse pensamento infantil nos atrapalha a perceber que no mundo real não existem heróis e vilões. Pelo menos não em essência.

 

Os mesmos atores massacram crianças de um lado do muro para preservar suas crianças do seu lado. Os mesmos atores estupram mulheres inocentes por puro sadismo ao mesmo tempo em que combatem pessoas que não pensariam duas vezes em dizimar o seu povo – incluindo mulheres, crianças e idosos.

 

Ou seja, ninguém é “só bom” ou “só mau”, de modo que no mundo real não existem heróis e vilões como nas histórias que nos ensinam. Perceber isso mostra como, um ano depois, essa discussão estúpida sobre se o Hamas é um grupo terrorista ou se Israel está praticando genocídio em Gaza só existe porque as pessoas precisam, desesperadamente, encontrar um vilão e um herói para a sua história.

 

Daí quando isso não fica claro, em vez de assumir que não existem heróis e vilões, melhor é ignorar fatos notórios e moldar a realidade de acordo com o que é conveniente. Assim, quem quer pintar Israel como vilão vai ignorar que o Hamas não pensa duas vezes antes de usar as suas próprias crianças como escudos humanos para esconder material bélico que será utilizado contra Israel.

 

 

Por sua vez, vai gritar aos quatro ventos que Israel está eliminando sem qualquer pudor civis inocentes, explodindo escolas cheias de crianças e estuprando as mulheres que atravessam o caminho do seu exército. Girando o olhar, quem quer pintar o Hamas como vilão vai ignorar que Israel convenientemente justifica que precisa continuar bombardeando Gaza porque não encontra seus reféns, “escondidos” em um território menor do que o de Belo Horizonte, apesar de ser capaz de implantar chips bomba em pagers no Irã; assassinar um líder do Hezbollah dentro de um quarto de hotel com nível de segurança presidencial; e encontrar outro para mata-lo em um bunker subterrâneo com todos os tipos de bloqueios balísticos imagináveis.

 

Também será ignorado o fato de que a população do Estado de Israel é, em grande medida, contra a guerra e acusa diretamente seu chefe de governo, Benjamin Netanyahu, de estender esta guerra para além do necessário por interesses políticos particulares, sem qualquer misericórdia com os seus cidadãos israelenses mantidos reféns. Entretanto, as atrocidades do Hamas serão gritadas aos quatro ventos, demonstrando a frieza com que o grupo rouba comida de gente faminta, desviando ajuda humanitária, obriga sua população a viver como refém e desvia dinheiro que deveria ser direcionado para serviços públicos para os seus interesses militares e terroristas.

 

Em suma, cada maniqueísta faz o recorte que lhe convém e finge que não vê a parte podre do seu “herói eleito”, de modo a lhe permitir reafirmar suas crenças infantis de que existem heróis no mundo que lutam contra vilões. Esta crença infantil ainda permite que, com a ingenuidade de uma criança que espera o Papai Noel, fiemos que os heróis são santos, não erram e não pecam, e os vilões são demônios, incapazes de fazer qualquer coisa boa ou de serem vítimas de algo ou alguém.

 

Assim, dá até para legitimar as atrocidades que nossos heróis praticam contra nossos vilões, afinal estamos na batalha do bem contra o mal. E se você acha que esse pensamento só serve para analisar a guerra em Israel, vale a pena observar o resultado das eleições do último domingo e a quantidade de gente eleita maniqueísticamente como representante do bem para lutar contra mal.

 

Ou seja, seguimos crianças ingênuas, manipuláveis, com raciocínio simplista e aptas a aceitar qualquer resposta fácil, desde que condizentes com as próprias crenças. Para isso, basta alimentar a fantasia de que há um representante do bem por nós, disseminar a ameaça de um mal maior e distribuir uma gota de esperança por vez. É até fácil...