Recentemente fomos bombardeados com sucessivos casos de corrupção no Poder Judiciário, iniciando por uma investigação no âmbito do STJ que foi oriunda de informações contidas no celular de um lobista assassinado na porta de casa. A partir desta investigação, alguns tribunais estaduais já estão com operações deflagradas, com desembargadores, juízes e servidores afastados por medidas cautelares.
Pelas informações divulgadas, outros tribunais já estão na mira das investigações, o que indica que se tratava de uma dinâmica de proporções nacionais. Quanto ao STJ, é preciso ser justo com os ministros envolvidos nas matérias, visto que já está muito claro que o caso envolvia a equipe técnica e assessores responsáveis pela tramitação e minutagem das decisões, e não os ministros diariamente.
Parêntesis: algum leigo pode pensar que seria impossível aos técnicos se corromperem sem o envolvimento dos ministros, mas é plenamente possível. Só quem não é do ramo acredita que é possível a um ministro julgar milhares de recursos por ano. Só para ter uma ideia, conforme o Relatório Justiça em números, o STJ proferiu 133.784 decisões e 63.895 despachos em 2023, o que dá uma média de 5.990 despachos e decisões por ministro. Isso dá 16 decisões e despachos por cada um dos 365 dias do ano. Já deu para entender que a conta não fecha, certo?
Voltando: que a corrupção por si é um problema é indiscutível. Entretanto, o que eu quero discutir aqui é algo muito sério, próprio do Poder Judiciário e pouco conhecido do “grande público” (ou seja, quem não convive com os membros do Judiciário).
Se pegarmos a história do Poder Judiciário no Brasil, vamos entender que ela nunca foi muito republicana. A criação da Justiça Federal, sua extinção e retorno são bastante sintomáticos sobre a função adotada pelo Judiciário no Brasil e seus desvios da teorização de Montesquieu.
Entretanto, há um ponto importante: a não ser nas discussões de cúpula, que envolvem problemas existentes em todo o mundo, no dia a dia, ser juiz no Brasil não era muita vantagem até o início da década de 1990. Se buscarmos os mais velhos, ouviremos histórias que hoje parecem bizarras de magistrados com vida modesta, ainda que sempre envoltos nas relações de poder e na típica deferência do cargo.
Por isso, dentre os raros bacharéis em direito de décadas atrás, muitos se mantinham na advocacia, muito mais rentável e com o mesmo nível de respeitabilidade social da magistratura. A Constituição de 1988 democratizou o direito, ampliou o Judiciário e as instituições jurídicas que vivem no seu entorno (como Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e a própria Advocacia Privada).
Junto com essa ampliação de poder e de tamanho, toda a carreira da magistratura foi reestruturada e a remuneração do magistrado foi elevada a outro patamar. Hoje a remuneração de um magistrado alcança cerca de R$ 40.000,00, o que equivale a mais de 28 salários mínimos por mês.
Segundo o Ipea, a renda média do brasileiro é de R$ 3.137,00, o que significa dizer que o magistrado recebe por mês mais do que o brasileiro médio recebe por ano. Obviamente, neste cenário, a carreira ganha outro nível de atratividade, principalmente quando se complementa a informação de que a advocacia privada perdeu muito da sua valorização e capacidade de retorno financeiro antes existente.
Soma-se, ainda, o fato de que o salário base do magistrado muitas vezes é complementado por inúmeras verbas indenizatórias que não se computam no conceito de remuneração e, portanto, não se sujeitam ao teto constitucional. Daí que se veem algumas notícias de magistrados recebendo em um mês valores por vezes dez a vinte vezes maiores do que o teto constitucional, fruto de verbas indenizatórias acumuladas.
O efeito colateral desta valorização do judiciário foi, por um lado, a elitização do concurso e, por outro lado, o desvirtuamento da vocação para a magistratura. Pelo primeiro lado, o filtro de entrada na magistratura foi ampliado, com uma disputa desigual entre os concorrentes.
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Isto porque a boa remuneração da magistratura fez com que os filhos das classes mais abastadas parassem suas vidas (muitas vezes por anos) até conseguir uma vaga na magistratura. Esta interrupção não é permitida para as classes que dependem do próprio trabalho para sobreviver e, muitas vezes, são arrimo de família, de modo que não podem parar de trabalhar para se dedicar tanto tempo para as provas.
Além disso, as provas são pulverizadas em todo o país, de modo que um candidato gasta, em média, cerca de R$ 5.000,00 por concurso (o que já está acima da remuneração média do brasileiro). Ou seja, muita gente não faz o concurso porque não tem condições financeiras mesmo, visto que a isenção é só da inscrição e não de todo o resto.
Não quero aqui desmerecer aqueles que são aprovados depois de anos por conta de estudos de forma alguma, visto que é perceptível que a aprovação depende de esforço individual. Estar com dedicação exclusiva aos estudos nem de longe indica aprovação. A questão apenas é pontuar que o sistema de seleção pode levar ao corte de pessoas por suas circunstâncias e não pelos seus saberes.
Entretanto, a pior parte é a atração de pessoas sem vocação para a carreira. Certa vez fiz um experimento social em sala: mostrei uma reportagem mostrando que um magistrado havia recebido R$ 1 milhão entre remuneração e verbas indenizatórias em um único mês.
Ato contínuo, perguntei quem julgava aquela circunstância errada, principalmente quando contrastada com o valor da salário mínimo do país. A unanimidade da turma concordou que era errado.
Logo depois, perguntei quem ali da turma gostaria de ser magistrado e de estar no lugar daquele em que recebeu aquele milhão de reais de dinheiro público. Desta vez, quase a unanimidade da turma levantou a mão – com a ressalva de dois que permaneceram de mãos abaixadas.
Percebeu o perigo? Essas pessoas, estudantes de direito, aptas em breve período a disputar aquele cargo, afirmam reconhecer que é errado e, mesmo assim, gostariam de estar neste lugar. Quem entra com esta mentalidade não tem uma relação de missão com a magistratura, mas de fonte do maior volume de renda possível.
Misturar esta fragilidade motivacional interna com muito poder em mãos é a tempestade perfeita para a corrupção, visto que dinheiro por dinheiro, ele pode vir de várias formas, fontes e fundamentos possíveis. A pessoa que entra na carreira apenas pela remuneração, tende a se frustrar rápido.
O trabalho é dantesco, muito menos glamouroso do que parece para quem é de fora, muitas vezes repetitivo (imagina o trabalho de um juiz em uma vara de execuções fiscais?!) e em qualquer circunstância mentalmente desgastante. Só pelo dinheiro é impossível ficar e sem vocação é impossível não adoecer ou esmorecer.
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E penso que aqui mora a gênese (obviamente não a única) da corrupção na magistratura. Neste ambiente exaustivo, por contraintuitivo que possa parecer, o juiz se fragiliza e sem a devida vocação para o cargo se torna vulnerável a investidas nada republicanas.
Dentre outras coisas, é preciso repensar a remuneração dos magistrados, para que tais remunerações estratosféricas sejam evitadas. O Judiciário é a última instância de poder e precisa ter uma conduta acima da média de qualquer outro poder. Ainda que haja licitude em tais pagamentos, é imperioso que eles não existam para evitar que a imagem e a confiança no Judiciário sejam abaladas ou descredibilizadas.
Além disso, é preciso repensar a forma de seleção dos magistrados, a fim de criar desincentivos para aqueles que pensam na carreira exclusivamente em razão da remuneração. Esses não vocacionados são exatamente os que aparecem descredibilizando a imagem da magistratura, causando escândalos que se acumulam e atingindo os milhares de juízes que trabalham (muito) anonimamente todos os dias, muitas vezes às custas da própria saúde, para tentar entregar um serviço jurisdicional para quem precisa.
Ao fim, é um chamado para resguardar a própria democracia, o que mostra que a magistratura exige dos seus membros muito mais do que pensamentos individuais e por isso não cabem nela aqueles que não são capazes de compreender a grandeza desta função.