No último domingo foi realizada a primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio e, como acontece todos os anos, somos submetidos às mesmas notícias de sempre. Antes da prova, há uma série de matérias sobre as regras da prova, a ansiedade dos alunos e como os cursinhos ficam lotados com “aulões” de véspera.

 

Durante a prova, para quem fica de fora, surgem as notícias sobre os atrasados que perderam a prova. Todo ano é exatamente a mesmíssima coisa: alguém deu com a cara na porta e perdeu a prova.

 

O máximo de variação que eu já vi foi: “estudante chega um minuto depois de fechar o portão e é impedido de fazer o Enem” ou “estudante chora e se desespera porque não conseguiu chegar no horário da prova”. Ou seja, em suma, trata-se da mesma coisa e quer dizer que a pessoa chegou atrasada e perdeu a hora de entrar para fazer a prova.

 



 

À medida em que a prova se desenrola, começam a surgir as notícias dos estudantes eliminados. Novamente, todo ano é a mesma coisa: alguém foi eliminado porque foi sem documentos; outro foi eliminado porque o celular tocou no meio da prova; outro foi eliminado porque estava tentando burlar a prova com alguma coisa encontrada no lanche ou na roupa.

 

Mais do mesmo. E, como você já deve estar acostumado, esse mais do mesmo serve apenas de contexto para pensarmos em algo um pouco mais complexo. O de hoje é bem objetivo (mas não menos complexo): já perceberam como não levamos (nós, o povo) regras a sério? Já parou para pensar como isso impacta o dia a dia e influencia os jovens?

 

Salvo no caso das pessoas que sofreram algum infortúnio da vida, como um acidente de carro, um roubo ou coisa que o valha, nada justifica chegar atrasado para fazer uma prova. Eu já fiz prova em outro Estado, andando de ônibus, com dinheiro contado no bolso e não perdi o horário.

 

 

Magia nenhuma: obrigação. É o básico calcular e programar quanto tempo se gasta para cumprir uma tarefa que tem hora para começar e terminar. Entretanto, já reparou que cumprir horário definitivamente não é algo que nós (o povo) levamos a sério.

 

Marca-se um evento para começar às 9h e ele começa às 9h40. Uma reunião é pautada entre 10h e 11h20 e começa às 10h30min e termina 12h30. A consulta médica é registrada para as 17h e o médico te chama às 18h20.

 

 

E ninguém reclama, ninguém se incomoda e ninguém age de tal modo a gerar uma consequência para o atraso. Resultado: cumprir horários se torna algo completamente desnecessário e, pior, sem valor. Agora imagina uma criança que aprende a olhar o relógio e descobre que a festa de aniversário do coleguinha está marcada para as 16h e vê os próprios pais saindo de casa às 17h30 sem se incomodar e serem recebidos como se nada tivesse acontecido.

 

Aí essa mesma criança percebe que os eventos da escola nunca começam no horário que está no convite; o almoço da família não tem hora; o show que ele tanto quis ir começou 2h atrasado; e assim por diante. Em todos estes eventos a mesma espinha dorsal: um comportamento de normalidade.

 

Na verdade, a normalidade é o desrespeito à regra. As pessoas muito cedo são ensinadas que se a festa está marcada para as 20h é para chegar às 22h30. Ou seja, há uma regra moral (super efetiva) de que a regra posta “deve” ser descumprida para que haja alguma relação de pertinência e pertencimento com o lugar.

 

Há outros exemplos infinitos... toda sala de aula tem uma plaquinha de proibido celular e todo mundo usa. Todo aluno sabe que tem aquele professor que não lê os trabalhos, então pode colocar qualquer coisa e está tudo bem. Todo mundo sabe que na frente da escola não pode parar em fila dupla, mas o jovem passou a vida inteira entrando no carro dos pais parados na fila dupla para ele entrar.

 

Fique à vontade para continuar...

 

E é neste contexto que esperamos que jovens de 17/18 anos, que muitas vezes nunca fizeram uma prova oficial antes na vida, cumpram rigorosamente com as regras de um edital que ele não leu. É neste contexto que criamos a justa (e ingênua) expectativa de que o jovem tenha o cuidado de observar os alarmes do próprio telefone que ele nunca precisou governar, visto que sequer precisa parar de usá-lo no ambiente em que seu uso é proibido.

 

Não demanda muito para concluir que não há a menor chance de dar certo. E aqui entra uma questão interessante. Ronald Dworkin foi um renomado filósofo e jurista dos EUA que tem um livro famoso nos programas de pós-graduação em direito no Brasil denominado “Taking Rights Seriously”. Significa, literalmente, “Levando os direitos a sério”.

 

Parece maluco, mas uma pessoa precisa passar uma vida desenvolvendo uma lógica, baseada na Teoria da Justiça, para chegar a algumas premissas que permitam a consideração com seriedade da norma jurídica.

 

Parêntesis: sim pequeno gafanhoto, há várias “teorias da justiça”. A “Justiça” não “é algo”, mas “está”, conforme a perspectiva de tempo e lugar de um povo. E por isso elas (as teorias) são muitas. Assim, a partir de agora, quando alguém falar que algo é “injusto”, você responde: “injusto para quem cara pálida?”. Pode parecer contraintuitivo, mas ajuda a entender o mundo como ele é e não como o nosso diminuto umbigo gostaria que ele fosse.

 

Voltando: o ponto interessante aqui é que essa premissa permite avaliarmos como consideramos a norma jurídica e, principalmente, como consideramos o outro. Ao desrespeitar um horário, desrespeito o tempo do outro. Ao permitir o uso do celular em sala, desrespeito o direito ao sossego de quem obedece à norma.

 

Ao ser compreensivo com o jovem que não foi de uniforme para a escola, desrespeito todos que se comprometeram conforme a regra e ensino para este jovem que as regras podem ser superadas para a satisfação própria. Ao pegar o meu filho na fila dupla na frente da escola, com uma fila imensa de veículos congestionados atrás, ensino-o que a minha vontade (ou o meu umbigo) é mais importante do que o mundo e se alguém se prejudicar pela minha incapacidade de estacionar o carro mais distante e caminhar algumas quadras é um dano aceitável.

 

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Veja que o jovem apenas é engolido por um contexto egocêntrico de normalização da noção de que o correto é o que “me atende”. Certa vez a zeladoria da escola da minha filha pediu desculpas porque a professora nova não me conhecia e não liberou a criança antes de confirmar os dados.

 

Fiquei intrigado: ora, vocês estão protegendo a segurança da minha filha e estão me pedindo desculpas por isso? Resposta: “tem pai que não entende e se aborrece”. É bizarro! Até porque se a criança sair com a pessoa errada dá processo, escândalo e polícia. O problema é que as pessoas são especiais demais para não serem conhecidas pelo mundo. A regra só vale para o outro.

 

E no dia a dia, normalizando atos que nada mais são do que prevalência da nossa vontade individual em detrimento de regras sociais mínimas, vamos ensinando aos nossos jovens que a regra não importa. E se a regra for injusta? Acontece bastante. Nestes casos, ao invés de compreender como mudar a regra, resolvemos facilmente o questionamento descumprindo a regra.

 

E quando a regra não importa, vamos lentamente institucionalizando e conhecendo a antítese do direito: a barbárie.

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